sábado, 26 de novembro de 2011

Lúcifer


Um homem não sabe o que é o ódio de verdade até conhecer meu ódio. Deus me conhece. Deus conhece meu ódio. Os homens pensam que conhecem. Mas ninguém me conhece realmente até que eu venha busca-lo.
Sou o pai do ódio, a mãe da desesperança, a tentação da carne, a sede de sangue, o cheiro do medo, o choro na noite. Sou o ranger de dentes, a faca que mata, o dedo no gatilho.  Sou o horror real. O terror. O desespero. Vivo desde sempre, desde que Ele criou o mundo e dele me expulsou, por não aceitar que sua maior criação, o Homem, é uma farsa cheia de erros. Disse isso a Ele e fui  expulso. Então nossa guerra começou. Desde então, eu e minhas legiões buscamos almas humanas na Terra. Vou provar a Ele que eu estava certo. No fim dos dias, acertaremos as contas.
Meu reino são trevas. E nas trevas comecei a agir. Despertei a cobiça no homem, o prazer, a luxúria, o poder, a vingança, a paixão pelo poder. Durante séculos, prometi a mim mesmo que não descansaria enquanto não provasse a Ele que até mesmo Deus erra, e que a humanidade era a prova mais lancinante de seu erro.
Provoquei guerras desenfreadas e carnificinas com bestas humanas sedentas de sangue. E, durante milênios, a humanidade sequer imaginou minha existência ou a Dele. Eu e Ele (ah, isso é tão irônico...) fomos divididos e representados por diversos nomes, deuses e demônios pelas civilizações. Sangue foi derramado em nome desses deuses e demônios. Eu gostei. Ele não.
Sempre fui discreto e furtivo. Sempre atuei nas sombras, fazendo os homens delirarem com os sonhos e desejos que eu colocava em suas cabeças. Deus era mais arrojado. Seus anjos agiam abertamente quando necessário. Abriam  águas de mares, lançavam pragas como castigo divino, construíam mandamentos em forma de pedra.
Então, Ele, Deus, teve medo de perder sua criação para mim. E, no seu medo, trocou de cara. Um Deus de duas caras. Deixou de ser o Deus do castigo para ser o Deus do amor. Os homens dizem que se aprende pelo amor ou pela dor. Pela dor, eu sou soberano. Então Ele se transformou no amor.
E enviou seu Filho para selar uma nova aliança com a humanidade, e enviou um homem para ajuda-lo na missão. Jesus e Judas. Eram como irmãos. Jesus fez milagres e expulsou várias das minhas legiões de corpos humanos. Judas O levou à cruz. Ofereci a ambos mundos e tesouros para que nada fizessem. Falhei. E, na cruz, o Homem foi perdoado por Deus. Deus venceu esta batalha. Naquele dia, eu urrei todo meu ódio. Mas a guerra não havia terminado.
Desde então, intensifiquei minha ação. Minhas legiões estão mais fortes. Infiltrei-me naquilo que os homens chamam de igreja e arrastei seus papas para a perdição. Perderam-se com o gosto do poder. Ordenaram as cruzadas. Mataram. Humilharam. Homens e mulheres morreram em fogueiras em nome da Inquisição. Eu estava lá. Eu e minhas legiões. Inventamos o conceito de pecado. Pena que não registramos a patente...ahahahahahah.... É, o diabo também pode ser engraçado. Mas é tão feio quanto dizem.
E as mulheres. Inebriei-as com o sabor da luxúria. Eu estava em cada carne rasgada de prazer, em cada suspiro, em cada homem que matava seu irmão por uma mulher. É fácil. Basta pensar em mim. Sou atencioso e estou atento a seus desejos. E, ao contrário Dele, estou pronto para atendê-los. Peças e receberás. Bata e a porta e abrirá. E eu estarei nela, esperando você girar a maçaneta.
O século 20 foi inteiramente meu. Todo o round. Meu dedo puxou o gatilho que matou o príncipe (ah, os homens com seus reis, rainhas e príncipes e princesas...) e começou a primeira guerra mundial. Criei Hitler para que ele trucidasse os judeus, os mesmos judeus que foram escolhidos por Deus para a eterna aliança. Iluminei o cérebro de gênios para que criassem a bomba atômica, meu brinquedo preferido. Ele inventou a fé. Eu, as religiões. Estou em cada templo no qual homens e mulheres rezam para um deus morto. Estou em cada pastor que usa a hipocrisia para enganar a fé. Em cada padre que seduz uma criança. Em cada mão que mata. Em cada sangue no asfalto. Em cada esquina ou encruzilhada. Estou em todo lugar.
Você já deve ter me visto. Já deve ter conversado comigo. Pensado em mim. Pedido minha ajuda. E eu me apresentei a você, apertei sua mão, elogiei sua gravata, conversei sobre política, sexo e futebol, e disse que a você que poderia sempre, sempre, contar comigo. Você deve ter me achado agradável.  Uso bons perfumes. Sei como agradar.
Adoro sua vaidade. Adoro suas mulheres. Adoro seu mundo. Quero-o para mim. Façamos assim: peça-me alguma coisa. Esqueça-se Dele. Eu o ajudarei. E, quando for a hora, virei buscar sua alma. A grande batalha final começou. Você pode me chamar do que quiser. Mas você sabe meu nome. Chame-me devagar na profundeza das sombras. E eu estarei ao seu lado.

terça-feira, 15 de novembro de 2011

Jesus


           Amei Judas desde que o conheci. Sabia que sua missão era nobre e cruel: entregar o Filho do Homem para que a aliança entre Deus e a humanidade se completasse. Ele foi o escolhido. Eu e meu Pai sabíamos que ele faria o que tinha que ser feito. Judas era forte e determinado.

         Eu o encontrei na estrada. E ele, filho único, deixou sua mãe, Ciborea, para me seguir e me servir. Tive pena da sua mãe. Era uma boa mulher. Ao engravidar, cercou-se de todos os cuidados para que o filho nascesse agasalhado e aquecido.

Não recebeu a visita de um anjo, como Maria, minha mãe. Mas, em sonhos, sua intuição materna sabia que seu filho não seria um homem comum. Sabia que ele sofreria. E, principalmente, sabia que ela sofreria mais do que todos. Que seria odiado pela eternidade.

Hoje, todos veneram minha mãe, Maria, cujo amor pela humanidade é tão infinito quanto as estrelas que meu Pai criou. Mas ninguém sabe como sofreu Ciborea, mãe de Judas, que hoje habita a morada de meu Pai. Judas teve uma boa mãe, que o abençoou com carinho e amor. Sem Judas, não haveria Cristo crucificado, Filho do Homem. Nem a aliança eterna.

Quando Judas me seguiu, ela o olhou como uma mãe que perde o filho para sempre. Depois me olhou. Em seus olhos, não havia raiva. De longe, eu a ouvi sussurar: “Está consumado”. Então, Judas partiu comigo.

Era o mais forte e decidido dos meus discípulos. Sei que me amava. Os outros eram fracos e hesitantes. Mesmo Pedro ficou indeciso na hora de escolher entre a família ou me seguir. Seguiu-me hipnotizado por minhas palavras, mas dúvidas fincavam, com freqüência, pregos em seu coração de pescador. Eu sabia que, na noite em que eu fosse preso, ele me negaria três vezes antes do galo cantar. Mas aquela seria uma noite terrível, a mais longa e negra de todas as noite de todos os homens e de todas as mulheres desde a criação do mundo e da humanidade, e eu conheço o coração dos homens. Pedro tinha um bom coração.

Judas amava Israel e as leis e profecias, e odiava os romanos, mais do que todos os discípulos. Mais do que todos, queria a glória de Israel e de Jerusalém. Eu sabia que este amor a Israel e ódio aos romanos o faria voltar-se contra mim quando chegasse a hora. Era por isso que ele havia sido o escolhido.

Sabia que Judas freqüentava grupos de resistência aos romanos. Grupos que assassinavam soldados romanos, soldados que deixavam filhos órfãos, mulheres de luto e mães desesperadas. Embora não soubessem, os soldados romanos também eram filhos do meu Pai. E eu os amava tanto quanto amava aqueles que me seguiam. Tanto quanto um Pai ama seus filhos, e um filho ama seus irmãos. Os césares eram meu irmão e filho do meu Pai. Pilatos era meu irmão e filho do meu Pai. Mas demoraram séculos em umbrais, depois da minha Morte e Ressurreição, para descobrir a Verdade.

Lembro-me de uma noite no deserto, quando eu e meus discípulos dormíamos perto de uma fogueira. Lúcifer apareceu a Judas na forma de uma serpente. Eu já o havia visto outras vezes, quando tentou fazer com que eu desistisse de morrer e pregar a palavra de meu Pai. Tentou convencê-lo a não entregar o Filho do Homem, porque sabia que minha Morte e Ressurreição criaria uma legião de seguidores do meu Pai. Mas ele não aceitou. Ele era forte e queria a glória de Israel. E Lúcifer desapareceu nas trevas da noite. Por isso, ele, Judas, foi o escolhido para a missão.

Judas mudou quando começou a me ouvir falar de amor e perdoar inimigos. Sabia que ele jamais perdoaria os romanos. Ficou transtornado quando afirmei que meu reino não era deste mundo. Então, começou a cumprir sua missão.

Na nossa última ceia, ele já havia tramado tudo. Ele queria que minha prisão me obrigasse a chamar meus exércitos de anjos para me salvar. Mas ainda restavam sombras de dúvidas em seu coração, pois ele me amava. Então, o mandei fazer o que tinha que ser feito. E ele se foi na noite densa e trevosa. Um cachorro latiu quando ele partiu, as pombas esconderam-se em seus ninhos, uma criança chorou ao longe, uma mãe bateu de porta em porta em busca de alimento para seu filho.

Meu coração estava amargurado no Monte das Oliveiras. Todos meus discípulos dormiam, inclusive Pedro. A amargura estraçalhava minha alma. Suei sangue. Caí de joelhos. E pedi a meu Pai que afastasse esse cálice de mim e de Judas.

Mas a recordação do sofrimento do mundo, com todos os choros, todos os rangeres de dentes, com a dor de todas as mães que perdem seus filhos, de todos os pais que não conseguem alimentar suas famílias, de todas as injustiças, de todos os condenados, de todos os infelizes, pousou a mão no meu ombro. Por eles, sabia que deveria cumprir meu destino. Eu e Judas.

Então, ele apareceu rodeado de sacerdotes e soldados romanos. Beijou-me na face. Não era o beijo de um traidor. Era o beijo de um homem que acredita em seus ideais. O beijo de um irmão. Fui preso e torturado. Soube que naquela mesma noite meus discípulos fugiram e se esconderam em covas e casas desabitadas, como pássaros assustados. Pedro negou-me três vezes. Judas, arrependido, não se escondeu. Preferiu se matar. Havia cumprido sua missão.

Também naquela mesma noite, no momento em que ele se matou, meu espírito apareceu a ele. Eu o agradeci por ter sido forte e não ter se desviado do caminho traçado. Meu Pai o recebeu em sua morada.

Sem ele, minha palavra não teria ecoado pelo mundo e meus milagres teriam sido em vão. Sem ele, talvez o mundo hoje não conhecesse meu Pai. Judas foi um homem de coragem e me amou. E eu sempre o amei como a um irmão. Mas os homens ainda não o perdoaram. Ainda não compreenderam a aliança firmada com meu Pai, nem a importância de Judas. Ele cumpriu sua missão.

Hoje, falo essas palavras para dizer que Judas não foi um traidor. Eu e Judas éramos como irmãos. E morremos como irmãos.       

quinta-feira, 10 de novembro de 2011

Judas


                                          
 Não traí Jesus Cristo. Não sou um traidor. Deixem o rótulo de traidor para aqueles que não sabem carregar sua cruz. Para aqueles que, na calada da noite, suam e tremem de medo frente ao destino. Eu não sou um traidor.

Na mesma noite em que me suicidei, Jesus apareceu para mim. Estava lindo, brilhante, com uma luz solar emoldurando seu rosto. Sorriu.

Aproximou-se de minha alma esmagada. Pegou meu rosto e o colocou em seu peito. Afagou-me a face e disse: “Obrigado, Judas, por ter cumprido sua missão. Agora vai, que a minha cruz ainda não terminou. Mas logo nos encontraremos nos campos de meu Pai”. E minha alma amargurada se acalmou, o sangue que escorria de minha testa refrescou, a tempestade que castigava meu coração virou brisa.

Eis, pois, a verdade. Fui retirado do inferno a mando de Deus para cumprir uma missão na Terra. A mais terrível de todas elas. A única que, aos olhos dos homens, não teria perdão. Mas Deus não vê com os olhos dos homens. Deus às vezes precisa da mão humana para cumprir seus desígnios. Desta vez, eu fui sua mão. Fui a mão de Deus.

Houve ocasiões em que Deus incubiu seus anjos da guerra de cumprir sua vontade. Foi assim quando o Mar Vermelho se abriu. Foi assim quando pragas se abateram sobre o Egito. Foi assim quando a peste negra dizimou a Europa. Mas seus anjos não poderiam cumprir a missão de matar o Filho do Homem. Só um homem poderia fazê-lo. Então, Ele buscou-me nas profundezas do Aqueronte e deu-me a missão. Em troca, eu teria a redenção.

Em terra, fui um bom filho, um bom homem. Tive o carinho e o amor de minha mãe. Lembro-me dela, com longos cabelos soltos, consolando meu choro à noite quando, em sonhos, eu pressentia minha missão. Era uma boa mulher. Era uma mãe que amava seu filho. Foi uma mãe que teve a vida destruída por seu filho.

Amava Israel e odiava os romanos. Ansiava pelas profecias que falavam de Israel livre e glorioso. Que garantiam a vinda de um salvador, um homem, um deus que nos livraria do jugo romano. Amava meu povo. Odiava os romanos com todas as minhas forças.

Envolvi-me em grupos de resistência, sempre massacrados pelos romanos. Vi milhares morrerem ou se transformarem em escravos em nome de César. E quem era César, afinal, para escravizar meu povo? Meu povo tinha um Deus, que havia nos prometido um salvador. Eu acreditava em Deus e no salvador.

Quando vi Jesus de Nazaré pregando a libertação dos homens, prometendo um reino justo e fazendo milagres, eu o amei. E virei seu seguidor naquele mesmo momento. Minha alma foi arrebatada por ele e sua voz, que ecoava de montanhas distantes e mundos ainda não descobertos. Eu o amei profundamente.

Acreditei que Jesus fosse o salvador de Israel, o rei que tanto esperávamos. Um rei que fazia milagres e ressuscitava mortos. Um rei que acalmava o mar e fazia cegos enxergarem. Um rei que nos mostrou que estava com Deus, e que Deus estava com ele.

Ele expulsava demônios. E eu sonhava com o dia em que, em glória, entraríamos em Jerusalém, e nossos exércitos derrotariam os romanos, elevando novamente o nome de Israel.

Foi quando o vi falando em amor e perdão. E que seu reino não era deste mundo. Então, seu reino não era Israel. Nem seu templo era Jerusalém. Ele disse “daí a César o que é de César”. Que salvador é esse que se curva ao tirano? Se seu reino não era Israel, onde seria? Em que mundo seria o reino de Jesus de Nazaré?

Multidões o acompanhavam. Percebi que Ele não era o salvador de Israel, e que estava se tornando perigoso. Certa vez, curou a filha de um oficial romano. Em outra ocasião, insultou nossos sacerdotes e os chamou de hipócritas.

Foi quando percebi que Ele havia saído de controle e eu deveria fazer alguma coisa para obrigá-lo a cumprir as profecias e libertar Israel. A melhor maneira de fazer isso era entregá-lo aos sacerdotes e aos romanos. Assim, Ele chamaria seus exércitos invisíveis para derrotá-los. E Israel estaria livre.

Certa vez, estávamos no deserto. Todos, inclusive Jesus de Nazaré, dormiam. A noite era negra e o frio intenso. Uma pequena fogueira nos aquecia. Foi quando uma serpente apareceu e sussurrou: “Judas....”. E então ela falou: “Sei que pretendes entregar o Filho do Homem aos sacerdotes. Mas Ele não pode vencer. O mundo deve ser meu. Dar-te-ei todos os reinos e todos os tesouros e todas as mulheres na Terra para que não faças o que pretendes fazer”. Minha pele arrepiou, meus olhos ficaram cegos e meu coração tremeu. Mas então a serpente se foi.

Na última ceia, tive a certeza de que agia certo quando Ele mandou-me fazer o que eu tinha que fazer. E assim eu fiz. Procurei os sacerdotes e fiz o pacto de entregá-lo. Deram-me 30 moedas que não pedi. Só queria a glória de Israel. E sabia agora que Jesus de Nazaré seria realmente o salvador.

Levei-os ao Monte das Oliveiras, encontrei-o e o beijei. Ele me olhou com tristeza nos olhos, uma tristeza vinda do Céu e de todas as vozes dos condenados. Saí e esperei por Sua glória. Naquela noite, soube que Pedro o havia negado três vezes.

E então percebi que sua glória, nem a de Israel, viriam. Ele foi preso e torturado. Não haviam exércitos celestes para ajudá-los. Não havia ninguém para ajudá-lo. Ele estava só. A mesma multidão que antes o recebera com ramos na entrada de Jerusalém agora o execrava. A mesma multidão decidiu libertar Barrabás. Ela, a multidão, o traiu.

Naquela noite, minha alma se dilacerou. Vaguei pelas ruas de Jerusalém. Agarrei as veste de um pobre homem na rua e desabafei: “Ele falava que venceria todos seus inimigos. Que reconstruiria Jerusalém em três dias. Eu acreditei Nele. Eu O entreguei. Eu o matei. E agora devo implorar Seu perdão.” O homem se afastou como uma serpente.

Sozinho no frio da rua escura e deserta, olhei para o céu. Chorei. E implorei a Deus: “Pai, se puderes, afasta de mim este cálice. Por que me condenastes para sempre?” E corri para a morte.

Ao morrer, afinal, me lembrei o motivo pelo qual Deus me trouxe à Terra. Compreendi nas palavras de Jesus, que me acolheu em seu peito. Compreendi que havia cumprido minha missão. Deus me perdoaria e, naquela mesma noite, me recebeu em Sua morada. Jesus me perdoou. Maria, sua mãe, me perdoou. Mas o mundo não me perdoou até hoje. Poderá Deus perdoar o mundo algum dia?   



domingo, 6 de novembro de 2011

Um dia na vida (obrigado, John...)

O relógio toca e me desperta às seis da manhã. Estou morto. Tive insônia e fui dormir às quatro. Mas isso não interessa. Trabalhar é preciso. Filhos na faculdade. A prestação da casa. A luz. O carro. O supermercado. Depois dizem que a vida não tem preço. Tem. E caro. E você paga, de uma forma ou de outra.
A cabeça dói há dias. Veias pulam nas têmporas. O coração dá a sensação de parar por segundos. Estou morto. Mas dane-se. Sou o capitão de um navio que ainda não chegou ao porto. E ele tem que chegar.


Pulo da cama, tomo um banho e uma xícara de café, beijo a mulher e saio de casa. Chove. O ônibus passa na hora exata. Eu subo e paro em pé em cima de uma senhora, que me xinga porque gotas do meu guarda-chuva caem em seus seios moles. Eu rio e deixo a imaginação voar. Lá fora, um ônibus atropelou um cara numa moto. O corpo ainda está no chão. Uma multidão olha. A cabeça dói.


Chego no escritório e bato o cartão às oito. Digo bom dia, como vai, tudo bem, como foi ontem, e afinal sento na minha cadeira. Pilhas de papéis aguardam minha análise. Respiro fundo. Estou morto.


Levanto e vou pegar um café. Encontro uma das secretárias da firma. Jovem, bonita, sensual. Lembro meus tempos de jovem e digo uma piada idiota. Ela ri educadamente. Vai embora. Fico com cara de pateta enquanto tomo o café. A cabeça dói.
Volto pra mesa e o chefe cobra os papéis. Quer parte deles antes do almoço. Tenho vontade de fumar. Paro o trabalho e vou dar uma pitada na escada, único lugar permitido para fumantes. A secretária está lá, com outra funcionária. Conta como foi a balada da noite anterior. Riem. Sinto-me sinto ridículo. Apago o cigarro e volto para a mesa. Estou morto.


Entrego os papéis às onze e cinqüenta. O chefe reclama da demora e diz que ando no mundo da lua. Que preciso me esforçar mais, que tem muita gente jovem de olho no meu cargo. Tenho vontade de mandá-lo tomar no cu, mas engulo o sapo. As contas, a faculdade, o carro, o supermercado. Peço desculpas e volto para a mesa. Antes tomo um café. A cabeça dói.


Hora do almoço. Desço com um colega para o self-service de sempre. Ele é mais novo que meus cabelos grisalhos. Fala de futebol, mulheres, comenta sobre as secretárias, diz quem está “pegando”, gaba-se de suas conquistas. Ouço e nada digo. Estou morto.


Chega outro colega. Fala da família e do sítio que está comprando, de sonhos realizados. Ouço e digo é, legal, bacana, você será feliz lá, parabéns. Lembro-me que não tenho mais sonhos. Antes é preciso pagar a casa, a faculdade, o carro, o supermercado. Ele continua falando e eu mergulho nos meus pensamentos. A cabeça dói.


Começo da tarde, de volta ao batente. Leio meus papéis cheios de números e de projeções para o futuro. A gravata aperta o pescoço. O almoço corrói o estômago. Levanto e tomo mais um café. A respiração fica difícil. Tenho vontade de parar. Mas tem a faculdade, o carro, a casa, o supermercado. Tomo outro café e volto para a mesa. Estou morto.


Cinco da tarde. A mulher liga e pede pra levar pão para o café. Lembra que amanhã vence a prestação do carro. Diz que minha sogra se queixou de dores e de estragos na casa dela, e que precisamos arrumar a parede que está com infiltração. Conta que uma filha ligou avisando que vai passar a noite na casa de uma amiga para estudar. Que meu cunhado vai fazer churrasco domingo e temos que levar a picanha. Que viu na TV que inventaram uma nova forma de fazer lipoaspiração. Que vai dar uma saída com uma amiga para ir a o shopping, mas vai deixar a janta pra mim. Que a diarista não foi e a casa ainda está de pernas pro ar. A cabeça dói.


Fim de expediente. Levanto, visto o paletó, pego minha pasta e afrouxo a gravata. O chefe sai sorridente com os novos executivos. Um colega fala que ouviu falar em demissões na firma. Novos tempos, mundo globalizado, pós-graduados, sangue novo, essas coisas. Que precisamos evoluir. Estou morto.


Ainda chove. Entro no ônibus e tomo cuidado para que o guarda-chuva não molhe ninguém. Uma mulher parada um pouco mais à frente grita porque o cara ao lado está se esfregando nela. Barraco. Envergonhado, o cara desce no próximo ponto. A mulher fala que devia ter chamado a polícia. O motorista arranca o ônibus. Balançamos feito gado. É o que somos. A cabeça dói.


Desço. Passo na padaria e compro pães, cigarros e uma caixinha de cerveja. Chego em casa. Estou sozinho. Coloco o guarda-chuva no tanque de lavar roupas e abro uma latinha. A cerveja desce bem. Desce rápido. Abro outra e acendo um cigarro. Desabo no sofá e penso na vida. O corpo dói. Estou morto.


Penso em quando era jovem. Lembro do meu pai saindo para trabalhar de terno e gravata, feito eu agora. Lembro do dia que disse a ele que não gostaria de ser como ele, de passar a vida trabalhando para garantir o sustento da casa. Ele sorriu e disse que um dia eu entenderia tudo. Ele acertou. A cabeça dói.


Na décima-segunda latinha, percebo que estou tonto e o maço de cigarros está acabando. A cabeça gira e dói. O estômago enrola. A mulher ligou dizendo que já a caminho. Eu disse tudo bem, te espero, meu amor. Na TV, o jornal diz que um avião caiu, a inflação subiu e crise assusta o mundo. Há uma guerra em algum lugar. Caças franceses e ingleses despejaram bombas e destruíram cidades. No Brasil, alguém roubou dinheiro de merenda escolar. Um ministro caiu. Um louco diz que o mundo vai acabar. Eu rio. Estou morto.


Levanto para pegar mais uma latinha. Abro a geladeira e vejo que acabou. Decido tomar uma dose de cachaça. Ela desce esquentando o peito. Lembro que amanhã é dia de pagar a prestação. Acendo mais um cigarro e sopro a fumaça para o alto. A mulher não gosta que eu fume em casa. Vai brigar comigo. Mas agora estou só. Dou mais um trago e bebo mais uma cachaça. A cabeça dói.


O estômago cobra a conta. Enjôo. Vou ao banheiro e vomito a vida. Junto com a cerveja e a cachaça, o vômito leva as prestações, o carro, a casa, as faculdades. Leva o mundo, as bombas, o shopping. Leva sonhos que não tenho mais. Cansaço, muito cansaço. Sou o capitão de um barco que ainda não chegou ao porto. Tenho que conseguir. Tenho que conseguir. Minha cabeça incha e algo explode dentro dela. Dor. Muita dor. Eu desmonto sobre o vaso e sobre meu vômito. “Capitão, ó meu capitão”. Escuro. Estou morto.