sábado, 26 de novembro de 2011

Lúcifer


Um homem não sabe o que é o ódio de verdade até conhecer meu ódio. Deus me conhece. Deus conhece meu ódio. Os homens pensam que conhecem. Mas ninguém me conhece realmente até que eu venha busca-lo.
Sou o pai do ódio, a mãe da desesperança, a tentação da carne, a sede de sangue, o cheiro do medo, o choro na noite. Sou o ranger de dentes, a faca que mata, o dedo no gatilho.  Sou o horror real. O terror. O desespero. Vivo desde sempre, desde que Ele criou o mundo e dele me expulsou, por não aceitar que sua maior criação, o Homem, é uma farsa cheia de erros. Disse isso a Ele e fui  expulso. Então nossa guerra começou. Desde então, eu e minhas legiões buscamos almas humanas na Terra. Vou provar a Ele que eu estava certo. No fim dos dias, acertaremos as contas.
Meu reino são trevas. E nas trevas comecei a agir. Despertei a cobiça no homem, o prazer, a luxúria, o poder, a vingança, a paixão pelo poder. Durante séculos, prometi a mim mesmo que não descansaria enquanto não provasse a Ele que até mesmo Deus erra, e que a humanidade era a prova mais lancinante de seu erro.
Provoquei guerras desenfreadas e carnificinas com bestas humanas sedentas de sangue. E, durante milênios, a humanidade sequer imaginou minha existência ou a Dele. Eu e Ele (ah, isso é tão irônico...) fomos divididos e representados por diversos nomes, deuses e demônios pelas civilizações. Sangue foi derramado em nome desses deuses e demônios. Eu gostei. Ele não.
Sempre fui discreto e furtivo. Sempre atuei nas sombras, fazendo os homens delirarem com os sonhos e desejos que eu colocava em suas cabeças. Deus era mais arrojado. Seus anjos agiam abertamente quando necessário. Abriam  águas de mares, lançavam pragas como castigo divino, construíam mandamentos em forma de pedra.
Então, Ele, Deus, teve medo de perder sua criação para mim. E, no seu medo, trocou de cara. Um Deus de duas caras. Deixou de ser o Deus do castigo para ser o Deus do amor. Os homens dizem que se aprende pelo amor ou pela dor. Pela dor, eu sou soberano. Então Ele se transformou no amor.
E enviou seu Filho para selar uma nova aliança com a humanidade, e enviou um homem para ajuda-lo na missão. Jesus e Judas. Eram como irmãos. Jesus fez milagres e expulsou várias das minhas legiões de corpos humanos. Judas O levou à cruz. Ofereci a ambos mundos e tesouros para que nada fizessem. Falhei. E, na cruz, o Homem foi perdoado por Deus. Deus venceu esta batalha. Naquele dia, eu urrei todo meu ódio. Mas a guerra não havia terminado.
Desde então, intensifiquei minha ação. Minhas legiões estão mais fortes. Infiltrei-me naquilo que os homens chamam de igreja e arrastei seus papas para a perdição. Perderam-se com o gosto do poder. Ordenaram as cruzadas. Mataram. Humilharam. Homens e mulheres morreram em fogueiras em nome da Inquisição. Eu estava lá. Eu e minhas legiões. Inventamos o conceito de pecado. Pena que não registramos a patente...ahahahahahah.... É, o diabo também pode ser engraçado. Mas é tão feio quanto dizem.
E as mulheres. Inebriei-as com o sabor da luxúria. Eu estava em cada carne rasgada de prazer, em cada suspiro, em cada homem que matava seu irmão por uma mulher. É fácil. Basta pensar em mim. Sou atencioso e estou atento a seus desejos. E, ao contrário Dele, estou pronto para atendê-los. Peças e receberás. Bata e a porta e abrirá. E eu estarei nela, esperando você girar a maçaneta.
O século 20 foi inteiramente meu. Todo o round. Meu dedo puxou o gatilho que matou o príncipe (ah, os homens com seus reis, rainhas e príncipes e princesas...) e começou a primeira guerra mundial. Criei Hitler para que ele trucidasse os judeus, os mesmos judeus que foram escolhidos por Deus para a eterna aliança. Iluminei o cérebro de gênios para que criassem a bomba atômica, meu brinquedo preferido. Ele inventou a fé. Eu, as religiões. Estou em cada templo no qual homens e mulheres rezam para um deus morto. Estou em cada pastor que usa a hipocrisia para enganar a fé. Em cada padre que seduz uma criança. Em cada mão que mata. Em cada sangue no asfalto. Em cada esquina ou encruzilhada. Estou em todo lugar.
Você já deve ter me visto. Já deve ter conversado comigo. Pensado em mim. Pedido minha ajuda. E eu me apresentei a você, apertei sua mão, elogiei sua gravata, conversei sobre política, sexo e futebol, e disse que a você que poderia sempre, sempre, contar comigo. Você deve ter me achado agradável.  Uso bons perfumes. Sei como agradar.
Adoro sua vaidade. Adoro suas mulheres. Adoro seu mundo. Quero-o para mim. Façamos assim: peça-me alguma coisa. Esqueça-se Dele. Eu o ajudarei. E, quando for a hora, virei buscar sua alma. A grande batalha final começou. Você pode me chamar do que quiser. Mas você sabe meu nome. Chame-me devagar na profundeza das sombras. E eu estarei ao seu lado.

4 comentários:

  1. eu me pergunto: Pq ele faz isso?
    Espero que ele se arrependa, quando ver que podemos ser mais do que desejos.

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  2. Ele não se arrepende de nada, Luiz Gustavo (aliás, obrigado por ler o conto). Ele é o senhor do submundo. E conhece nossa alma.

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  3. Eu que agradeço Paulo, adorei os contos, são ótimos!!

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  4. Como sempre, seus contos nos postam faces de medo, dor, desespero e inteligência. Você não sabe o quanto me assusto cada vez que você posta algo sobre as sombras. Daí a vontade de te presentear com uma grande e bela luminária, daquelas antigas, do século XVII, as mesmas que iluminavam as mortes de lobisomens, Dráculas e demônios, nos corredores de almas sombrias e inquietantes. Você é o mestre do suspense! Ou seria mestre em descobrir os medos mas profundos das almas?
    Abraço amigo, saudades de ti!

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