terça-feira, 15 de novembro de 2011

Jesus


           Amei Judas desde que o conheci. Sabia que sua missão era nobre e cruel: entregar o Filho do Homem para que a aliança entre Deus e a humanidade se completasse. Ele foi o escolhido. Eu e meu Pai sabíamos que ele faria o que tinha que ser feito. Judas era forte e determinado.

         Eu o encontrei na estrada. E ele, filho único, deixou sua mãe, Ciborea, para me seguir e me servir. Tive pena da sua mãe. Era uma boa mulher. Ao engravidar, cercou-se de todos os cuidados para que o filho nascesse agasalhado e aquecido.

Não recebeu a visita de um anjo, como Maria, minha mãe. Mas, em sonhos, sua intuição materna sabia que seu filho não seria um homem comum. Sabia que ele sofreria. E, principalmente, sabia que ela sofreria mais do que todos. Que seria odiado pela eternidade.

Hoje, todos veneram minha mãe, Maria, cujo amor pela humanidade é tão infinito quanto as estrelas que meu Pai criou. Mas ninguém sabe como sofreu Ciborea, mãe de Judas, que hoje habita a morada de meu Pai. Judas teve uma boa mãe, que o abençoou com carinho e amor. Sem Judas, não haveria Cristo crucificado, Filho do Homem. Nem a aliança eterna.

Quando Judas me seguiu, ela o olhou como uma mãe que perde o filho para sempre. Depois me olhou. Em seus olhos, não havia raiva. De longe, eu a ouvi sussurar: “Está consumado”. Então, Judas partiu comigo.

Era o mais forte e decidido dos meus discípulos. Sei que me amava. Os outros eram fracos e hesitantes. Mesmo Pedro ficou indeciso na hora de escolher entre a família ou me seguir. Seguiu-me hipnotizado por minhas palavras, mas dúvidas fincavam, com freqüência, pregos em seu coração de pescador. Eu sabia que, na noite em que eu fosse preso, ele me negaria três vezes antes do galo cantar. Mas aquela seria uma noite terrível, a mais longa e negra de todas as noite de todos os homens e de todas as mulheres desde a criação do mundo e da humanidade, e eu conheço o coração dos homens. Pedro tinha um bom coração.

Judas amava Israel e as leis e profecias, e odiava os romanos, mais do que todos os discípulos. Mais do que todos, queria a glória de Israel e de Jerusalém. Eu sabia que este amor a Israel e ódio aos romanos o faria voltar-se contra mim quando chegasse a hora. Era por isso que ele havia sido o escolhido.

Sabia que Judas freqüentava grupos de resistência aos romanos. Grupos que assassinavam soldados romanos, soldados que deixavam filhos órfãos, mulheres de luto e mães desesperadas. Embora não soubessem, os soldados romanos também eram filhos do meu Pai. E eu os amava tanto quanto amava aqueles que me seguiam. Tanto quanto um Pai ama seus filhos, e um filho ama seus irmãos. Os césares eram meu irmão e filho do meu Pai. Pilatos era meu irmão e filho do meu Pai. Mas demoraram séculos em umbrais, depois da minha Morte e Ressurreição, para descobrir a Verdade.

Lembro-me de uma noite no deserto, quando eu e meus discípulos dormíamos perto de uma fogueira. Lúcifer apareceu a Judas na forma de uma serpente. Eu já o havia visto outras vezes, quando tentou fazer com que eu desistisse de morrer e pregar a palavra de meu Pai. Tentou convencê-lo a não entregar o Filho do Homem, porque sabia que minha Morte e Ressurreição criaria uma legião de seguidores do meu Pai. Mas ele não aceitou. Ele era forte e queria a glória de Israel. E Lúcifer desapareceu nas trevas da noite. Por isso, ele, Judas, foi o escolhido para a missão.

Judas mudou quando começou a me ouvir falar de amor e perdoar inimigos. Sabia que ele jamais perdoaria os romanos. Ficou transtornado quando afirmei que meu reino não era deste mundo. Então, começou a cumprir sua missão.

Na nossa última ceia, ele já havia tramado tudo. Ele queria que minha prisão me obrigasse a chamar meus exércitos de anjos para me salvar. Mas ainda restavam sombras de dúvidas em seu coração, pois ele me amava. Então, o mandei fazer o que tinha que ser feito. E ele se foi na noite densa e trevosa. Um cachorro latiu quando ele partiu, as pombas esconderam-se em seus ninhos, uma criança chorou ao longe, uma mãe bateu de porta em porta em busca de alimento para seu filho.

Meu coração estava amargurado no Monte das Oliveiras. Todos meus discípulos dormiam, inclusive Pedro. A amargura estraçalhava minha alma. Suei sangue. Caí de joelhos. E pedi a meu Pai que afastasse esse cálice de mim e de Judas.

Mas a recordação do sofrimento do mundo, com todos os choros, todos os rangeres de dentes, com a dor de todas as mães que perdem seus filhos, de todos os pais que não conseguem alimentar suas famílias, de todas as injustiças, de todos os condenados, de todos os infelizes, pousou a mão no meu ombro. Por eles, sabia que deveria cumprir meu destino. Eu e Judas.

Então, ele apareceu rodeado de sacerdotes e soldados romanos. Beijou-me na face. Não era o beijo de um traidor. Era o beijo de um homem que acredita em seus ideais. O beijo de um irmão. Fui preso e torturado. Soube que naquela mesma noite meus discípulos fugiram e se esconderam em covas e casas desabitadas, como pássaros assustados. Pedro negou-me três vezes. Judas, arrependido, não se escondeu. Preferiu se matar. Havia cumprido sua missão.

Também naquela mesma noite, no momento em que ele se matou, meu espírito apareceu a ele. Eu o agradeci por ter sido forte e não ter se desviado do caminho traçado. Meu Pai o recebeu em sua morada.

Sem ele, minha palavra não teria ecoado pelo mundo e meus milagres teriam sido em vão. Sem ele, talvez o mundo hoje não conhecesse meu Pai. Judas foi um homem de coragem e me amou. E eu sempre o amei como a um irmão. Mas os homens ainda não o perdoaram. Ainda não compreenderam a aliança firmada com meu Pai, nem a importância de Judas. Ele cumpriu sua missão.

Hoje, falo essas palavras para dizer que Judas não foi um traidor. Eu e Judas éramos como irmãos. E morremos como irmãos.       

Um comentário:

  1. Grande Paulo Paiva!

    Até que enfim eu consegui acessar este Blog...
    Gostei muito disso aqui. É a sua cara, como sempre!
    Li alguns dos textos(não todos, por motivos óbvios)... muita qualidade!

    Posso dar uma sugestão? Escreve um, nessa linha, sobre Pedro, o braço direito de Cristo e que o negou 3x.
    Tô curioso...rs!

    Forte abraço, meu caro!
    Sucesso!

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