quinta-feira, 10 de novembro de 2011

Judas


                                          
 Não traí Jesus Cristo. Não sou um traidor. Deixem o rótulo de traidor para aqueles que não sabem carregar sua cruz. Para aqueles que, na calada da noite, suam e tremem de medo frente ao destino. Eu não sou um traidor.

Na mesma noite em que me suicidei, Jesus apareceu para mim. Estava lindo, brilhante, com uma luz solar emoldurando seu rosto. Sorriu.

Aproximou-se de minha alma esmagada. Pegou meu rosto e o colocou em seu peito. Afagou-me a face e disse: “Obrigado, Judas, por ter cumprido sua missão. Agora vai, que a minha cruz ainda não terminou. Mas logo nos encontraremos nos campos de meu Pai”. E minha alma amargurada se acalmou, o sangue que escorria de minha testa refrescou, a tempestade que castigava meu coração virou brisa.

Eis, pois, a verdade. Fui retirado do inferno a mando de Deus para cumprir uma missão na Terra. A mais terrível de todas elas. A única que, aos olhos dos homens, não teria perdão. Mas Deus não vê com os olhos dos homens. Deus às vezes precisa da mão humana para cumprir seus desígnios. Desta vez, eu fui sua mão. Fui a mão de Deus.

Houve ocasiões em que Deus incubiu seus anjos da guerra de cumprir sua vontade. Foi assim quando o Mar Vermelho se abriu. Foi assim quando pragas se abateram sobre o Egito. Foi assim quando a peste negra dizimou a Europa. Mas seus anjos não poderiam cumprir a missão de matar o Filho do Homem. Só um homem poderia fazê-lo. Então, Ele buscou-me nas profundezas do Aqueronte e deu-me a missão. Em troca, eu teria a redenção.

Em terra, fui um bom filho, um bom homem. Tive o carinho e o amor de minha mãe. Lembro-me dela, com longos cabelos soltos, consolando meu choro à noite quando, em sonhos, eu pressentia minha missão. Era uma boa mulher. Era uma mãe que amava seu filho. Foi uma mãe que teve a vida destruída por seu filho.

Amava Israel e odiava os romanos. Ansiava pelas profecias que falavam de Israel livre e glorioso. Que garantiam a vinda de um salvador, um homem, um deus que nos livraria do jugo romano. Amava meu povo. Odiava os romanos com todas as minhas forças.

Envolvi-me em grupos de resistência, sempre massacrados pelos romanos. Vi milhares morrerem ou se transformarem em escravos em nome de César. E quem era César, afinal, para escravizar meu povo? Meu povo tinha um Deus, que havia nos prometido um salvador. Eu acreditava em Deus e no salvador.

Quando vi Jesus de Nazaré pregando a libertação dos homens, prometendo um reino justo e fazendo milagres, eu o amei. E virei seu seguidor naquele mesmo momento. Minha alma foi arrebatada por ele e sua voz, que ecoava de montanhas distantes e mundos ainda não descobertos. Eu o amei profundamente.

Acreditei que Jesus fosse o salvador de Israel, o rei que tanto esperávamos. Um rei que fazia milagres e ressuscitava mortos. Um rei que acalmava o mar e fazia cegos enxergarem. Um rei que nos mostrou que estava com Deus, e que Deus estava com ele.

Ele expulsava demônios. E eu sonhava com o dia em que, em glória, entraríamos em Jerusalém, e nossos exércitos derrotariam os romanos, elevando novamente o nome de Israel.

Foi quando o vi falando em amor e perdão. E que seu reino não era deste mundo. Então, seu reino não era Israel. Nem seu templo era Jerusalém. Ele disse “daí a César o que é de César”. Que salvador é esse que se curva ao tirano? Se seu reino não era Israel, onde seria? Em que mundo seria o reino de Jesus de Nazaré?

Multidões o acompanhavam. Percebi que Ele não era o salvador de Israel, e que estava se tornando perigoso. Certa vez, curou a filha de um oficial romano. Em outra ocasião, insultou nossos sacerdotes e os chamou de hipócritas.

Foi quando percebi que Ele havia saído de controle e eu deveria fazer alguma coisa para obrigá-lo a cumprir as profecias e libertar Israel. A melhor maneira de fazer isso era entregá-lo aos sacerdotes e aos romanos. Assim, Ele chamaria seus exércitos invisíveis para derrotá-los. E Israel estaria livre.

Certa vez, estávamos no deserto. Todos, inclusive Jesus de Nazaré, dormiam. A noite era negra e o frio intenso. Uma pequena fogueira nos aquecia. Foi quando uma serpente apareceu e sussurrou: “Judas....”. E então ela falou: “Sei que pretendes entregar o Filho do Homem aos sacerdotes. Mas Ele não pode vencer. O mundo deve ser meu. Dar-te-ei todos os reinos e todos os tesouros e todas as mulheres na Terra para que não faças o que pretendes fazer”. Minha pele arrepiou, meus olhos ficaram cegos e meu coração tremeu. Mas então a serpente se foi.

Na última ceia, tive a certeza de que agia certo quando Ele mandou-me fazer o que eu tinha que fazer. E assim eu fiz. Procurei os sacerdotes e fiz o pacto de entregá-lo. Deram-me 30 moedas que não pedi. Só queria a glória de Israel. E sabia agora que Jesus de Nazaré seria realmente o salvador.

Levei-os ao Monte das Oliveiras, encontrei-o e o beijei. Ele me olhou com tristeza nos olhos, uma tristeza vinda do Céu e de todas as vozes dos condenados. Saí e esperei por Sua glória. Naquela noite, soube que Pedro o havia negado três vezes.

E então percebi que sua glória, nem a de Israel, viriam. Ele foi preso e torturado. Não haviam exércitos celestes para ajudá-los. Não havia ninguém para ajudá-lo. Ele estava só. A mesma multidão que antes o recebera com ramos na entrada de Jerusalém agora o execrava. A mesma multidão decidiu libertar Barrabás. Ela, a multidão, o traiu.

Naquela noite, minha alma se dilacerou. Vaguei pelas ruas de Jerusalém. Agarrei as veste de um pobre homem na rua e desabafei: “Ele falava que venceria todos seus inimigos. Que reconstruiria Jerusalém em três dias. Eu acreditei Nele. Eu O entreguei. Eu o matei. E agora devo implorar Seu perdão.” O homem se afastou como uma serpente.

Sozinho no frio da rua escura e deserta, olhei para o céu. Chorei. E implorei a Deus: “Pai, se puderes, afasta de mim este cálice. Por que me condenastes para sempre?” E corri para a morte.

Ao morrer, afinal, me lembrei o motivo pelo qual Deus me trouxe à Terra. Compreendi nas palavras de Jesus, que me acolheu em seu peito. Compreendi que havia cumprido minha missão. Deus me perdoaria e, naquela mesma noite, me recebeu em Sua morada. Jesus me perdoou. Maria, sua mãe, me perdoou. Mas o mundo não me perdoou até hoje. Poderá Deus perdoar o mundo algum dia?   



Um comentário:

  1. Estou adorando ler tudo por aqui!!!

    Parabéns!!! você é um ótimo escritor.

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