sábado, 26 de novembro de 2011

Lúcifer


Um homem não sabe o que é o ódio de verdade até conhecer meu ódio. Deus me conhece. Deus conhece meu ódio. Os homens pensam que conhecem. Mas ninguém me conhece realmente até que eu venha busca-lo.
Sou o pai do ódio, a mãe da desesperança, a tentação da carne, a sede de sangue, o cheiro do medo, o choro na noite. Sou o ranger de dentes, a faca que mata, o dedo no gatilho.  Sou o horror real. O terror. O desespero. Vivo desde sempre, desde que Ele criou o mundo e dele me expulsou, por não aceitar que sua maior criação, o Homem, é uma farsa cheia de erros. Disse isso a Ele e fui  expulso. Então nossa guerra começou. Desde então, eu e minhas legiões buscamos almas humanas na Terra. Vou provar a Ele que eu estava certo. No fim dos dias, acertaremos as contas.
Meu reino são trevas. E nas trevas comecei a agir. Despertei a cobiça no homem, o prazer, a luxúria, o poder, a vingança, a paixão pelo poder. Durante séculos, prometi a mim mesmo que não descansaria enquanto não provasse a Ele que até mesmo Deus erra, e que a humanidade era a prova mais lancinante de seu erro.
Provoquei guerras desenfreadas e carnificinas com bestas humanas sedentas de sangue. E, durante milênios, a humanidade sequer imaginou minha existência ou a Dele. Eu e Ele (ah, isso é tão irônico...) fomos divididos e representados por diversos nomes, deuses e demônios pelas civilizações. Sangue foi derramado em nome desses deuses e demônios. Eu gostei. Ele não.
Sempre fui discreto e furtivo. Sempre atuei nas sombras, fazendo os homens delirarem com os sonhos e desejos que eu colocava em suas cabeças. Deus era mais arrojado. Seus anjos agiam abertamente quando necessário. Abriam  águas de mares, lançavam pragas como castigo divino, construíam mandamentos em forma de pedra.
Então, Ele, Deus, teve medo de perder sua criação para mim. E, no seu medo, trocou de cara. Um Deus de duas caras. Deixou de ser o Deus do castigo para ser o Deus do amor. Os homens dizem que se aprende pelo amor ou pela dor. Pela dor, eu sou soberano. Então Ele se transformou no amor.
E enviou seu Filho para selar uma nova aliança com a humanidade, e enviou um homem para ajuda-lo na missão. Jesus e Judas. Eram como irmãos. Jesus fez milagres e expulsou várias das minhas legiões de corpos humanos. Judas O levou à cruz. Ofereci a ambos mundos e tesouros para que nada fizessem. Falhei. E, na cruz, o Homem foi perdoado por Deus. Deus venceu esta batalha. Naquele dia, eu urrei todo meu ódio. Mas a guerra não havia terminado.
Desde então, intensifiquei minha ação. Minhas legiões estão mais fortes. Infiltrei-me naquilo que os homens chamam de igreja e arrastei seus papas para a perdição. Perderam-se com o gosto do poder. Ordenaram as cruzadas. Mataram. Humilharam. Homens e mulheres morreram em fogueiras em nome da Inquisição. Eu estava lá. Eu e minhas legiões. Inventamos o conceito de pecado. Pena que não registramos a patente...ahahahahahah.... É, o diabo também pode ser engraçado. Mas é tão feio quanto dizem.
E as mulheres. Inebriei-as com o sabor da luxúria. Eu estava em cada carne rasgada de prazer, em cada suspiro, em cada homem que matava seu irmão por uma mulher. É fácil. Basta pensar em mim. Sou atencioso e estou atento a seus desejos. E, ao contrário Dele, estou pronto para atendê-los. Peças e receberás. Bata e a porta e abrirá. E eu estarei nela, esperando você girar a maçaneta.
O século 20 foi inteiramente meu. Todo o round. Meu dedo puxou o gatilho que matou o príncipe (ah, os homens com seus reis, rainhas e príncipes e princesas...) e começou a primeira guerra mundial. Criei Hitler para que ele trucidasse os judeus, os mesmos judeus que foram escolhidos por Deus para a eterna aliança. Iluminei o cérebro de gênios para que criassem a bomba atômica, meu brinquedo preferido. Ele inventou a fé. Eu, as religiões. Estou em cada templo no qual homens e mulheres rezam para um deus morto. Estou em cada pastor que usa a hipocrisia para enganar a fé. Em cada padre que seduz uma criança. Em cada mão que mata. Em cada sangue no asfalto. Em cada esquina ou encruzilhada. Estou em todo lugar.
Você já deve ter me visto. Já deve ter conversado comigo. Pensado em mim. Pedido minha ajuda. E eu me apresentei a você, apertei sua mão, elogiei sua gravata, conversei sobre política, sexo e futebol, e disse que a você que poderia sempre, sempre, contar comigo. Você deve ter me achado agradável.  Uso bons perfumes. Sei como agradar.
Adoro sua vaidade. Adoro suas mulheres. Adoro seu mundo. Quero-o para mim. Façamos assim: peça-me alguma coisa. Esqueça-se Dele. Eu o ajudarei. E, quando for a hora, virei buscar sua alma. A grande batalha final começou. Você pode me chamar do que quiser. Mas você sabe meu nome. Chame-me devagar na profundeza das sombras. E eu estarei ao seu lado.

terça-feira, 15 de novembro de 2011

Jesus


           Amei Judas desde que o conheci. Sabia que sua missão era nobre e cruel: entregar o Filho do Homem para que a aliança entre Deus e a humanidade se completasse. Ele foi o escolhido. Eu e meu Pai sabíamos que ele faria o que tinha que ser feito. Judas era forte e determinado.

         Eu o encontrei na estrada. E ele, filho único, deixou sua mãe, Ciborea, para me seguir e me servir. Tive pena da sua mãe. Era uma boa mulher. Ao engravidar, cercou-se de todos os cuidados para que o filho nascesse agasalhado e aquecido.

Não recebeu a visita de um anjo, como Maria, minha mãe. Mas, em sonhos, sua intuição materna sabia que seu filho não seria um homem comum. Sabia que ele sofreria. E, principalmente, sabia que ela sofreria mais do que todos. Que seria odiado pela eternidade.

Hoje, todos veneram minha mãe, Maria, cujo amor pela humanidade é tão infinito quanto as estrelas que meu Pai criou. Mas ninguém sabe como sofreu Ciborea, mãe de Judas, que hoje habita a morada de meu Pai. Judas teve uma boa mãe, que o abençoou com carinho e amor. Sem Judas, não haveria Cristo crucificado, Filho do Homem. Nem a aliança eterna.

Quando Judas me seguiu, ela o olhou como uma mãe que perde o filho para sempre. Depois me olhou. Em seus olhos, não havia raiva. De longe, eu a ouvi sussurar: “Está consumado”. Então, Judas partiu comigo.

Era o mais forte e decidido dos meus discípulos. Sei que me amava. Os outros eram fracos e hesitantes. Mesmo Pedro ficou indeciso na hora de escolher entre a família ou me seguir. Seguiu-me hipnotizado por minhas palavras, mas dúvidas fincavam, com freqüência, pregos em seu coração de pescador. Eu sabia que, na noite em que eu fosse preso, ele me negaria três vezes antes do galo cantar. Mas aquela seria uma noite terrível, a mais longa e negra de todas as noite de todos os homens e de todas as mulheres desde a criação do mundo e da humanidade, e eu conheço o coração dos homens. Pedro tinha um bom coração.

Judas amava Israel e as leis e profecias, e odiava os romanos, mais do que todos os discípulos. Mais do que todos, queria a glória de Israel e de Jerusalém. Eu sabia que este amor a Israel e ódio aos romanos o faria voltar-se contra mim quando chegasse a hora. Era por isso que ele havia sido o escolhido.

Sabia que Judas freqüentava grupos de resistência aos romanos. Grupos que assassinavam soldados romanos, soldados que deixavam filhos órfãos, mulheres de luto e mães desesperadas. Embora não soubessem, os soldados romanos também eram filhos do meu Pai. E eu os amava tanto quanto amava aqueles que me seguiam. Tanto quanto um Pai ama seus filhos, e um filho ama seus irmãos. Os césares eram meu irmão e filho do meu Pai. Pilatos era meu irmão e filho do meu Pai. Mas demoraram séculos em umbrais, depois da minha Morte e Ressurreição, para descobrir a Verdade.

Lembro-me de uma noite no deserto, quando eu e meus discípulos dormíamos perto de uma fogueira. Lúcifer apareceu a Judas na forma de uma serpente. Eu já o havia visto outras vezes, quando tentou fazer com que eu desistisse de morrer e pregar a palavra de meu Pai. Tentou convencê-lo a não entregar o Filho do Homem, porque sabia que minha Morte e Ressurreição criaria uma legião de seguidores do meu Pai. Mas ele não aceitou. Ele era forte e queria a glória de Israel. E Lúcifer desapareceu nas trevas da noite. Por isso, ele, Judas, foi o escolhido para a missão.

Judas mudou quando começou a me ouvir falar de amor e perdoar inimigos. Sabia que ele jamais perdoaria os romanos. Ficou transtornado quando afirmei que meu reino não era deste mundo. Então, começou a cumprir sua missão.

Na nossa última ceia, ele já havia tramado tudo. Ele queria que minha prisão me obrigasse a chamar meus exércitos de anjos para me salvar. Mas ainda restavam sombras de dúvidas em seu coração, pois ele me amava. Então, o mandei fazer o que tinha que ser feito. E ele se foi na noite densa e trevosa. Um cachorro latiu quando ele partiu, as pombas esconderam-se em seus ninhos, uma criança chorou ao longe, uma mãe bateu de porta em porta em busca de alimento para seu filho.

Meu coração estava amargurado no Monte das Oliveiras. Todos meus discípulos dormiam, inclusive Pedro. A amargura estraçalhava minha alma. Suei sangue. Caí de joelhos. E pedi a meu Pai que afastasse esse cálice de mim e de Judas.

Mas a recordação do sofrimento do mundo, com todos os choros, todos os rangeres de dentes, com a dor de todas as mães que perdem seus filhos, de todos os pais que não conseguem alimentar suas famílias, de todas as injustiças, de todos os condenados, de todos os infelizes, pousou a mão no meu ombro. Por eles, sabia que deveria cumprir meu destino. Eu e Judas.

Então, ele apareceu rodeado de sacerdotes e soldados romanos. Beijou-me na face. Não era o beijo de um traidor. Era o beijo de um homem que acredita em seus ideais. O beijo de um irmão. Fui preso e torturado. Soube que naquela mesma noite meus discípulos fugiram e se esconderam em covas e casas desabitadas, como pássaros assustados. Pedro negou-me três vezes. Judas, arrependido, não se escondeu. Preferiu se matar. Havia cumprido sua missão.

Também naquela mesma noite, no momento em que ele se matou, meu espírito apareceu a ele. Eu o agradeci por ter sido forte e não ter se desviado do caminho traçado. Meu Pai o recebeu em sua morada.

Sem ele, minha palavra não teria ecoado pelo mundo e meus milagres teriam sido em vão. Sem ele, talvez o mundo hoje não conhecesse meu Pai. Judas foi um homem de coragem e me amou. E eu sempre o amei como a um irmão. Mas os homens ainda não o perdoaram. Ainda não compreenderam a aliança firmada com meu Pai, nem a importância de Judas. Ele cumpriu sua missão.

Hoje, falo essas palavras para dizer que Judas não foi um traidor. Eu e Judas éramos como irmãos. E morremos como irmãos.       

quinta-feira, 10 de novembro de 2011

Judas


                                          
 Não traí Jesus Cristo. Não sou um traidor. Deixem o rótulo de traidor para aqueles que não sabem carregar sua cruz. Para aqueles que, na calada da noite, suam e tremem de medo frente ao destino. Eu não sou um traidor.

Na mesma noite em que me suicidei, Jesus apareceu para mim. Estava lindo, brilhante, com uma luz solar emoldurando seu rosto. Sorriu.

Aproximou-se de minha alma esmagada. Pegou meu rosto e o colocou em seu peito. Afagou-me a face e disse: “Obrigado, Judas, por ter cumprido sua missão. Agora vai, que a minha cruz ainda não terminou. Mas logo nos encontraremos nos campos de meu Pai”. E minha alma amargurada se acalmou, o sangue que escorria de minha testa refrescou, a tempestade que castigava meu coração virou brisa.

Eis, pois, a verdade. Fui retirado do inferno a mando de Deus para cumprir uma missão na Terra. A mais terrível de todas elas. A única que, aos olhos dos homens, não teria perdão. Mas Deus não vê com os olhos dos homens. Deus às vezes precisa da mão humana para cumprir seus desígnios. Desta vez, eu fui sua mão. Fui a mão de Deus.

Houve ocasiões em que Deus incubiu seus anjos da guerra de cumprir sua vontade. Foi assim quando o Mar Vermelho se abriu. Foi assim quando pragas se abateram sobre o Egito. Foi assim quando a peste negra dizimou a Europa. Mas seus anjos não poderiam cumprir a missão de matar o Filho do Homem. Só um homem poderia fazê-lo. Então, Ele buscou-me nas profundezas do Aqueronte e deu-me a missão. Em troca, eu teria a redenção.

Em terra, fui um bom filho, um bom homem. Tive o carinho e o amor de minha mãe. Lembro-me dela, com longos cabelos soltos, consolando meu choro à noite quando, em sonhos, eu pressentia minha missão. Era uma boa mulher. Era uma mãe que amava seu filho. Foi uma mãe que teve a vida destruída por seu filho.

Amava Israel e odiava os romanos. Ansiava pelas profecias que falavam de Israel livre e glorioso. Que garantiam a vinda de um salvador, um homem, um deus que nos livraria do jugo romano. Amava meu povo. Odiava os romanos com todas as minhas forças.

Envolvi-me em grupos de resistência, sempre massacrados pelos romanos. Vi milhares morrerem ou se transformarem em escravos em nome de César. E quem era César, afinal, para escravizar meu povo? Meu povo tinha um Deus, que havia nos prometido um salvador. Eu acreditava em Deus e no salvador.

Quando vi Jesus de Nazaré pregando a libertação dos homens, prometendo um reino justo e fazendo milagres, eu o amei. E virei seu seguidor naquele mesmo momento. Minha alma foi arrebatada por ele e sua voz, que ecoava de montanhas distantes e mundos ainda não descobertos. Eu o amei profundamente.

Acreditei que Jesus fosse o salvador de Israel, o rei que tanto esperávamos. Um rei que fazia milagres e ressuscitava mortos. Um rei que acalmava o mar e fazia cegos enxergarem. Um rei que nos mostrou que estava com Deus, e que Deus estava com ele.

Ele expulsava demônios. E eu sonhava com o dia em que, em glória, entraríamos em Jerusalém, e nossos exércitos derrotariam os romanos, elevando novamente o nome de Israel.

Foi quando o vi falando em amor e perdão. E que seu reino não era deste mundo. Então, seu reino não era Israel. Nem seu templo era Jerusalém. Ele disse “daí a César o que é de César”. Que salvador é esse que se curva ao tirano? Se seu reino não era Israel, onde seria? Em que mundo seria o reino de Jesus de Nazaré?

Multidões o acompanhavam. Percebi que Ele não era o salvador de Israel, e que estava se tornando perigoso. Certa vez, curou a filha de um oficial romano. Em outra ocasião, insultou nossos sacerdotes e os chamou de hipócritas.

Foi quando percebi que Ele havia saído de controle e eu deveria fazer alguma coisa para obrigá-lo a cumprir as profecias e libertar Israel. A melhor maneira de fazer isso era entregá-lo aos sacerdotes e aos romanos. Assim, Ele chamaria seus exércitos invisíveis para derrotá-los. E Israel estaria livre.

Certa vez, estávamos no deserto. Todos, inclusive Jesus de Nazaré, dormiam. A noite era negra e o frio intenso. Uma pequena fogueira nos aquecia. Foi quando uma serpente apareceu e sussurrou: “Judas....”. E então ela falou: “Sei que pretendes entregar o Filho do Homem aos sacerdotes. Mas Ele não pode vencer. O mundo deve ser meu. Dar-te-ei todos os reinos e todos os tesouros e todas as mulheres na Terra para que não faças o que pretendes fazer”. Minha pele arrepiou, meus olhos ficaram cegos e meu coração tremeu. Mas então a serpente se foi.

Na última ceia, tive a certeza de que agia certo quando Ele mandou-me fazer o que eu tinha que fazer. E assim eu fiz. Procurei os sacerdotes e fiz o pacto de entregá-lo. Deram-me 30 moedas que não pedi. Só queria a glória de Israel. E sabia agora que Jesus de Nazaré seria realmente o salvador.

Levei-os ao Monte das Oliveiras, encontrei-o e o beijei. Ele me olhou com tristeza nos olhos, uma tristeza vinda do Céu e de todas as vozes dos condenados. Saí e esperei por Sua glória. Naquela noite, soube que Pedro o havia negado três vezes.

E então percebi que sua glória, nem a de Israel, viriam. Ele foi preso e torturado. Não haviam exércitos celestes para ajudá-los. Não havia ninguém para ajudá-lo. Ele estava só. A mesma multidão que antes o recebera com ramos na entrada de Jerusalém agora o execrava. A mesma multidão decidiu libertar Barrabás. Ela, a multidão, o traiu.

Naquela noite, minha alma se dilacerou. Vaguei pelas ruas de Jerusalém. Agarrei as veste de um pobre homem na rua e desabafei: “Ele falava que venceria todos seus inimigos. Que reconstruiria Jerusalém em três dias. Eu acreditei Nele. Eu O entreguei. Eu o matei. E agora devo implorar Seu perdão.” O homem se afastou como uma serpente.

Sozinho no frio da rua escura e deserta, olhei para o céu. Chorei. E implorei a Deus: “Pai, se puderes, afasta de mim este cálice. Por que me condenastes para sempre?” E corri para a morte.

Ao morrer, afinal, me lembrei o motivo pelo qual Deus me trouxe à Terra. Compreendi nas palavras de Jesus, que me acolheu em seu peito. Compreendi que havia cumprido minha missão. Deus me perdoaria e, naquela mesma noite, me recebeu em Sua morada. Jesus me perdoou. Maria, sua mãe, me perdoou. Mas o mundo não me perdoou até hoje. Poderá Deus perdoar o mundo algum dia?   



domingo, 6 de novembro de 2011

Um dia na vida (obrigado, John...)

O relógio toca e me desperta às seis da manhã. Estou morto. Tive insônia e fui dormir às quatro. Mas isso não interessa. Trabalhar é preciso. Filhos na faculdade. A prestação da casa. A luz. O carro. O supermercado. Depois dizem que a vida não tem preço. Tem. E caro. E você paga, de uma forma ou de outra.
A cabeça dói há dias. Veias pulam nas têmporas. O coração dá a sensação de parar por segundos. Estou morto. Mas dane-se. Sou o capitão de um navio que ainda não chegou ao porto. E ele tem que chegar.


Pulo da cama, tomo um banho e uma xícara de café, beijo a mulher e saio de casa. Chove. O ônibus passa na hora exata. Eu subo e paro em pé em cima de uma senhora, que me xinga porque gotas do meu guarda-chuva caem em seus seios moles. Eu rio e deixo a imaginação voar. Lá fora, um ônibus atropelou um cara numa moto. O corpo ainda está no chão. Uma multidão olha. A cabeça dói.


Chego no escritório e bato o cartão às oito. Digo bom dia, como vai, tudo bem, como foi ontem, e afinal sento na minha cadeira. Pilhas de papéis aguardam minha análise. Respiro fundo. Estou morto.


Levanto e vou pegar um café. Encontro uma das secretárias da firma. Jovem, bonita, sensual. Lembro meus tempos de jovem e digo uma piada idiota. Ela ri educadamente. Vai embora. Fico com cara de pateta enquanto tomo o café. A cabeça dói.
Volto pra mesa e o chefe cobra os papéis. Quer parte deles antes do almoço. Tenho vontade de fumar. Paro o trabalho e vou dar uma pitada na escada, único lugar permitido para fumantes. A secretária está lá, com outra funcionária. Conta como foi a balada da noite anterior. Riem. Sinto-me sinto ridículo. Apago o cigarro e volto para a mesa. Estou morto.


Entrego os papéis às onze e cinqüenta. O chefe reclama da demora e diz que ando no mundo da lua. Que preciso me esforçar mais, que tem muita gente jovem de olho no meu cargo. Tenho vontade de mandá-lo tomar no cu, mas engulo o sapo. As contas, a faculdade, o carro, o supermercado. Peço desculpas e volto para a mesa. Antes tomo um café. A cabeça dói.


Hora do almoço. Desço com um colega para o self-service de sempre. Ele é mais novo que meus cabelos grisalhos. Fala de futebol, mulheres, comenta sobre as secretárias, diz quem está “pegando”, gaba-se de suas conquistas. Ouço e nada digo. Estou morto.


Chega outro colega. Fala da família e do sítio que está comprando, de sonhos realizados. Ouço e digo é, legal, bacana, você será feliz lá, parabéns. Lembro-me que não tenho mais sonhos. Antes é preciso pagar a casa, a faculdade, o carro, o supermercado. Ele continua falando e eu mergulho nos meus pensamentos. A cabeça dói.


Começo da tarde, de volta ao batente. Leio meus papéis cheios de números e de projeções para o futuro. A gravata aperta o pescoço. O almoço corrói o estômago. Levanto e tomo mais um café. A respiração fica difícil. Tenho vontade de parar. Mas tem a faculdade, o carro, a casa, o supermercado. Tomo outro café e volto para a mesa. Estou morto.


Cinco da tarde. A mulher liga e pede pra levar pão para o café. Lembra que amanhã vence a prestação do carro. Diz que minha sogra se queixou de dores e de estragos na casa dela, e que precisamos arrumar a parede que está com infiltração. Conta que uma filha ligou avisando que vai passar a noite na casa de uma amiga para estudar. Que meu cunhado vai fazer churrasco domingo e temos que levar a picanha. Que viu na TV que inventaram uma nova forma de fazer lipoaspiração. Que vai dar uma saída com uma amiga para ir a o shopping, mas vai deixar a janta pra mim. Que a diarista não foi e a casa ainda está de pernas pro ar. A cabeça dói.


Fim de expediente. Levanto, visto o paletó, pego minha pasta e afrouxo a gravata. O chefe sai sorridente com os novos executivos. Um colega fala que ouviu falar em demissões na firma. Novos tempos, mundo globalizado, pós-graduados, sangue novo, essas coisas. Que precisamos evoluir. Estou morto.


Ainda chove. Entro no ônibus e tomo cuidado para que o guarda-chuva não molhe ninguém. Uma mulher parada um pouco mais à frente grita porque o cara ao lado está se esfregando nela. Barraco. Envergonhado, o cara desce no próximo ponto. A mulher fala que devia ter chamado a polícia. O motorista arranca o ônibus. Balançamos feito gado. É o que somos. A cabeça dói.


Desço. Passo na padaria e compro pães, cigarros e uma caixinha de cerveja. Chego em casa. Estou sozinho. Coloco o guarda-chuva no tanque de lavar roupas e abro uma latinha. A cerveja desce bem. Desce rápido. Abro outra e acendo um cigarro. Desabo no sofá e penso na vida. O corpo dói. Estou morto.


Penso em quando era jovem. Lembro do meu pai saindo para trabalhar de terno e gravata, feito eu agora. Lembro do dia que disse a ele que não gostaria de ser como ele, de passar a vida trabalhando para garantir o sustento da casa. Ele sorriu e disse que um dia eu entenderia tudo. Ele acertou. A cabeça dói.


Na décima-segunda latinha, percebo que estou tonto e o maço de cigarros está acabando. A cabeça gira e dói. O estômago enrola. A mulher ligou dizendo que já a caminho. Eu disse tudo bem, te espero, meu amor. Na TV, o jornal diz que um avião caiu, a inflação subiu e crise assusta o mundo. Há uma guerra em algum lugar. Caças franceses e ingleses despejaram bombas e destruíram cidades. No Brasil, alguém roubou dinheiro de merenda escolar. Um ministro caiu. Um louco diz que o mundo vai acabar. Eu rio. Estou morto.


Levanto para pegar mais uma latinha. Abro a geladeira e vejo que acabou. Decido tomar uma dose de cachaça. Ela desce esquentando o peito. Lembro que amanhã é dia de pagar a prestação. Acendo mais um cigarro e sopro a fumaça para o alto. A mulher não gosta que eu fume em casa. Vai brigar comigo. Mas agora estou só. Dou mais um trago e bebo mais uma cachaça. A cabeça dói.


O estômago cobra a conta. Enjôo. Vou ao banheiro e vomito a vida. Junto com a cerveja e a cachaça, o vômito leva as prestações, o carro, a casa, as faculdades. Leva o mundo, as bombas, o shopping. Leva sonhos que não tenho mais. Cansaço, muito cansaço. Sou o capitão de um barco que ainda não chegou ao porto. Tenho que conseguir. Tenho que conseguir. Minha cabeça incha e algo explode dentro dela. Dor. Muita dor. Eu desmonto sobre o vaso e sobre meu vômito. “Capitão, ó meu capitão”. Escuro. Estou morto.

segunda-feira, 31 de outubro de 2011

O holandês voador (baseado numa velha lenda do mar)


                                                                     O holandês voador


                                                          1 – Tome mais um gole, baby
                                          
Vou beber mais uma cerveja, baby. Sirva-se também. Não sei seu nome. Não importa. Mas preciso de você. Preciso desabafar, dizer quem sou. Posso pagar pelo seu tempo. Posso respirar o perfume vagabundo e o esmalte cor de sangue que você usa para ganhar a vida. Posso suportar essa roupa suja. Mas agora preciso desabafar. Preciso do seu tempo. Não quero seu sexo. Ouça minha história, baby. Só isso. Pago bem.
Sou o holandês voador. O maldito. O condenado a vagar eternamente pelos mares por ter ofendido a Deus.
Nasci na Holanda no século 15. Já vi mares revoltos de ondas gigantescas, já vi águas calmas refletindo a lua, já vi de tudo que vive no mar. Eu e meu barco, pobre barco de madeira podre, de leme escuro e conformado de quem já sabe o que vem pela frente, de velas esfarrapadas, ondas, vento, sal, medo, frio, escuro, solidão. E eu sempre lá, baby, um condenado a vagar eternamente, enquanto houver noite e dia, dia e noite, enquanto o sol sair todas as manhãs. Sou um cachorro lazarento, um cão pestilento e solitário que todos chutam, uivando para a lua como quem quer dividir a solidão.
Não tente entender, baby. Apenas me ouça. Apenas finja que sou um homem comum, que dorme tranquilo todas as noites como dormem os que estão em terra firme e porto seguro. Como dormem os que vêm aqui em busca do seu sexo e depois voltam para casa embriagados de prazer e cachaça fazendo juras de amor à mulher. Finja que sou um deles, baby. Posso pagar pelo seu tempo.
Não existe terra firme para mim. Minha sina ainda não terminou. Já engoli água salgada, xinguei ventos, amaldiçoei ondas e expulsei, com uma arma tosca e enferrujada o anjo divino e iluminado que pousou na proa do meu barco trazendo mensagens do céu. Sou um condenado e o barco ainda balança sob meus pés. O barco quer o mar. E no mar não há terra firme. Só eu. Eu a solidão. Solidão e leme. Leme e lanterna na popa. E o sino. E o sino badala sempre e, badalando, o sino lembra minha sina. Blém, blém, blém...
Veja, baby. Veja que verme estou. Veja que farrapo sou. Meu barco está velho e carcomido. O casco está começando a rachar. Em breve, o mar estará entrando por ali. E estou cansado. Estou tão cansado, e meus ouvidos estão tão cheios de sal, que sequer consigo ouvir a canção de ninar que você poderia cantar para mim. Cante para mim, baby. Eu pago. E minhas mãos, tão grossas e calejadas de manejar o leme, já nem conseguem fazer carinho na tua pele branca e macia, onde muitos homens já deslizaram as mãos em busca de prazer. Tome mais uma cerveja, baby. Garçom, traga rum para mim.
Ouça. O sino do barco está tocando de novo. Blém, blém, blém...Tento fingir que não ouço. Mas é inútil. Bobagem. Ele me chama. É o sino. É a sina. Terei de ir, baby. Mas antes, preciso desabafar. Fique comigo só mais um minuto. Posso pagar pelo seu tempo. Seu tempo é tudo que me resta.

                                                           2 – O anjo

Me ouça baby, com esses olhos enormes de quem não dorme carregados de maquiagem podre e esse batom negro como as trevas. Meu coração é um campo de batalhas. Longas batalhas. Batalhas sangrentas. Batalhas cruéis. Já comandei marujos que devastaram vidas, vilas, homens, mulheres, crianças. Já comandei exércitos que dilaceraram famílias, desonraram crenças. Ri na cara da fé. Cuspi em esperanças. Comandei legiões que, em nome de reis insanos, semearam desespero e dor.
Comandei meu barco, minha nau, com orgulho de aço e punhos de ferro. Coloquei homens a ferro por, famintos, roubarem comida. Queriam pão. Dei-lhes morte. Chicoteei homens por demonstrarem medo. Fui um lobo. Um lobo sanguinário, sem alma, sem nada, sem vida. Um lobo em terra, nas estepes, selvagem. Um lobo do mar, sem deus. Apenas um lobo.
Naquela noite fria e tormentosa, a tempestade assolava meu barco. Lembro-me bem. Ondas gigantescas desabavam a bombordo e estibordo. Meus homens tiveram medo. Pediram para recolher velas e reduzir a velocidade. Pediram para que eu lhes salvasse a vida. Eu pensei: danem-se. Era meu barco. Eu era o capitão. Eu era o poder. Dane-se o medo dos homens. Dane-se os homens. Que me importam os homens? Danem-se! Icem todas as velas! Velocidade máxima!
Quem é Deus para me desafiar? Quem é Deus para mandar ondas, chuvas e ventos contra meu barco? Posso vencer Deus. Posso vencer o mar. E quem não me obedecer será jogado ao mar. Danem-se. Se têm medo, deveriam ter ficado em terra. Aqui é meu barco. Aqui mando eu. Deus não manda aqui. Nem o mar. Nem as ondas. Mando eu. Eu. Eu...outra cerveja e outra dose de rum, garçom.
Então, ele apareceu. Primeiro, como uma luz estranha, vindo do nada, fantasmagórica, sinistra. Apenas uma luz, que cegava a tripulação. Assim ficou por segundos. Depois, tomou forma. A forma de um anjo. Um anjo de Deus. A tempestade parou. O vento virou brisa. A noite ficou calma e leve. Os homens se ajoelharam. Ele era o mensageiro de Deus. Ele era a resposta às preces de todos os homens que ali estavam. Ele estava ali para salvar-lhes a vida.
Mas ele era um intruso na minha nau. Ali, só havia espaço para um deus, e esse deus era eu. A tripulação se ajoelhou para agradecer. Meu sangue ferveu. Saquei a arma e ordenei que ele se retirasse do meu barco. Ele era um intruso. Eu não podia admitir intrusos em meu barco, nem mesmo os que fossem enviados por Deus. Eu era o capitão. Ele apenas me olhou. Ordenei mais uma vez. Ele não se mexeu. Ordenei de novo. Ele continuava ali. Xinguei. Blasfemei. E então disparei. A bala saiu da minha arma, bateu em seu peito e voltou em minha direção. Explodiu em meu braço. Uma dor quente tomou conta do meu corpo. O sangue manchou minha camisa. Sangue. Meu sangue. Fui tomado pela fúria.
Saquei a espada e avancei contra ele. Tentei furar-lhe o peito. Cortar-lhe a cabeça. Mas, de repente, como num sonho, senti-me completamente paralisado. A espada continuava em minha mão, mas eu não conseguia caminhar. Até mesmo o sangue da bala havia parado de jorrar. Tentei gritar para a tripulação, mas não conseguia me mexer.
Então, ele falou, Falou sem mexer os lábios. Falou de uma forma que só eu escutei. E foi mais ou menos assim que ele falou ele: “És capitão de teu barco, mas não és dono da vida desses homens. Esses homens pertencem a Deus. És capitão de teu barco, mas não és Deus. Há muito temos te observado. Temos acompanhado tua crueldade. Temos acompanhado teu rastro de destruição. Sabemos tudo sobre ti. Sabemos de teu desprezo pela vida. Sabemos que és uma alma morta. Veja tua tripulação. Almas simples que sabem reconhecer a força e a presença de Deus. Mas tu, com sua empáfia, com sua soberba, com teu orgulho, simplesmente não consegue compreender o que é isso. Condenou-os à morte. Pouco te importa as vidas desses homens. Pouco te importa a vida. Pois bem. Deus decidiu que esses homens serão poupados da morte. Deus ouviu as preces desses homens. Deus decidiu que esses homens viverão essa noite. Que, apesar de tua natureza sanguinária, esses homens voltarão para suas casas. Mas tu não. Tu não mereces voltar ao convívio dos homens. Tu permanecerás eternamente neste barco, completamente só. Estás condenado a vagar solitário por mares e céus eternamente. Estás condenado a permanecer neste barco, completamente só, enquanto a Terra for Terra, enquanto o sol se levantar todos os dias. Estás condenado por Deus a permanecer neste barco até o fim dos tempos. E, como um louco, tomarás o leme e tentará encontrar o caminho de casa. Como um louco, verás ondas desabarem sobre ti. Como um louco, praguejarás contra Deus e contra o mundo. E então verás que Deus não escuta tuas pragas. O mundo saberá quem és, o que fizestes e qual foi sua danação. Os que te olharem também estarão condenados. Conhecerás a mais profunda solidão, o sofrimento, a dor e a desesperança, que rasgarão tua alma assim como a espada rasga a carne. Viverás durante séculos, até que Deus tenha piedade de ti. Serás conhecido como o amaldiçoado, o cão das noites chuvosas. Nessas noites, todos verão teu barco pairando sobre as águas, como um fantasma. Terás que lutar contra os monstros que habitam em teu coração. E aí talvez um dia Deus tenha piedade de ti. Talvez algum dia Deus lhe conceda uma nova oportunidade. Caso contrário, estarás condenado a sofrer completamente só, até que chegue o tempo em que o mar secará. Essa é tua maldição.”

                                   3 – Um fantasma movido a ódio e rum

E dito isso o anjo sumiu. Meu corpo voltou a se mexer a tempo de ver um redemoinho medonho e gigantesco se formando no mar. Vi minha nau embicar em direção ao redemoinho e tremi. Mas a tripulação estava estranhamente calma. Vi meu barco ser engolido pelo redemoinho. Tentei segurar-me às cordas mas não consegui. Senti a água fria do mar cortando minha pele como faca. Fechei os olhos e pensei: morte. Vou morrer. Está tudo acabado. E nada mais vi.
Não sei quanto tempo se passou. Quando abri de novo os olhos, eu continuava no meu barco. Completamente só. Não sabia onde foram parar meus homens. Não sabia o que havia sido feito de mim. Então, percebi que era verdade. O anjo estava certo. Eu estava amaldiçoado. Encha mais um copo, baby. Eu pago.
Em vão clamei pela tripulação. Onde estavam todos? Peterson! Por que abandonastes o leme? Volta, ou serás castigado! Joanhess! Já não mandei içar as velas? O que fazes que ainda não me obedecestes? Van Nielsen! Hans! Von Helmultz! Winter! Onde estão vocês? Por que não aparecem? Estou mandando que apareçam. O capitão está dando uma ordem. Sou o capitão e ainda mando nesse barco. Onde estão vocês? Como ousaram desertar? Apareçam ou serão punidos! Eu os colocarei a ferros! Serão jogados ao mar! Onde estão, seus bastardos?
Mas ninguém respondeu. Apenas o vento, que balançava a vela e fazia o leme girar sem rumo. Na cabine, o sino tocava. Blém, blém, blém...Ninguém na proa. Ninguém na popa. Ninguém, a não ser vento e mar. E rum, um rum amargo e interminável, com gosto de fel. E então afinal percebi que, tal como disse o anjo, assim seria dali para frente. Eu, meu barco fantasma e o mar. Uma estranha névoa vermelha nos cercava, como um sinal da vingança de Deus. Nada mais.
E assim naveguei durante séculos. Conheci a aurora boreal e os mistérios do céu. Vi estrelas morrendo e outras nascendo. Deixei de ser homem de carne e osso. Virei um fantasma maldito. Um fantasma movido a rum e ódio de Deus, pela maldição, e dos homens, por suas fraquezas. Às vezes, conseguia ver naus distantes nas noites em que as tempestades não eram tão fortes. Aproximava-me. Girava o leme do barco na direção da proa de navios desconhecidos. E, por alguns segundos, percebia que podia ser visto. E, por alguns segundos, algum pobre marujo da vigia conseguia ver meu barco, já conhecido como holandês voador, pairando acima do mar, envolto na névoa vermelha. E ele via tanto ódio, tanta tristeza e tanta solidão que a morte o carregava ali mesmo. Eu ria.
E assim naveguei durante séculos. Continuei enfrentando ondas gigantescas, ventos indomáveis. Às vezes, a solidão era tanta que eu gritava. Louco, fazia o leme girar voltas sem fim. Bêbado de rum, disparava minha arma contra mim. E sentia a bala entrando em minha carne, embora não tivesse mais carne. E sentia dor, embora não tivesse mais corpo. E continuava ali, como um cachorro sem dono, como um maldito, como uma doença sem cura, como um arrepio na espinha, como uma peste, como um sinal de desgraça, como o prenúncio da morte, como um símbolo do castigo divino. Eu, o holandês voador. Aquele que ninguém quer ver, aquele que todos amaldiçoam. E eu berrava e gritava, e amaldiçoava, e ria de bêbado, e bebia aquele rum de fel sem parar, como se fosse o cálice da vida. E, bêbado, vomitava rum para tomar mais rum e continuar bêbado, e berrando, e amaldiçoando, e praguejando e rindo da minha embriaguês. E chegou o tempo em que até mesmo olhar para céu nas noites de tempestade era proibido para os navegantes, para que não vissem o holandês voador.
E o tempo passou, e meu ódio foi ficando fraco, a não ser quando vinham as tempestades e o traziam de volta. Restou a desesperança. E, em desesperança atravessei novos séculos, enfrentei novas tempestades, recolhi velas, toquei o sino (blém, blém, blém) e girei o leme. Em desesperança, deixava-me cair solitário na proa do barco, olhando para o horizonte sem fim. E via apenas mar, e vento, e tempestades, e a vela, e ouvia o sino. E a desesperança era como a espada rasgando minha carne que não era carne, meu corpo que não era mais corpo, minha alma que não era mais alma.

                                           4 – Nas noites de tempestade

E o tempo passou, e a desesperança cresceu e tomou conta do meu barco. Ás vezes, fazia uma calmaria infernal, sem um único vento, uma única brisa. E as velas não se mexiam, o leme sequer se movimentava. Até o sino permanecia estranhamente calado. E o barco permanecia dias, semanas, numa calmaria insuportável, tão sem fim quanto meu sofrimento, tão profunda quanto minha solidão. E assim se passaram séculos, e eu não mais amaldiçoava, não mais gritava, não mais odiava, não mais chorava, não mais bebia aquele rum com gosto de inferno. Só o sino (blém, blém, blém) me lembrava da minha sina, da maldição, do peso e da ira de Deus no meu coração.
E então, numa noite calma, as ondas aquietaram-se. O vento parou. O anjo apareceu novamente. O mesmo anjo, o mesmo rosto duro, a mesma luz. As mesmas asas, o mesmo manto. E então ele falou, e era uma voz de trovão, que entrava na minha cabeça sem que ele abrisse a boca uma única vez. E sua voz quase arrebentava minha cabeça, e fazia minhas veias pulsarem tanto que tive medo que estourassem e jorrassem rum. E ele apenas me olhava, e suas palavras começaram a ecoar na minha cabeça mais forte que as badaladas do meu sino.
E ele disse mais ou menos isso: “Homem maldito, homem que, por sua crueldade, fostes amaldiçoado por todos, Deus está disposto a dar-lhe uma única chance de reparar o mal que fizestes. É hora de completar tua sina. Daqui a três luas, deixarás teu barco. Atracarás num porto onde anjos estarão te aguardando. Descerás e seguirás com eles. E então, terá uma nova oportunidade de retornar à terra dos homens. E ali, para encerrar a maldição, terás que encontrar uma mulher que o ame. E terá que aprender a amar, não apenas a ela, mas a todos aqueles que cruzarem teu caminho. Essa será tua  missão. Amar aquela que te amar, amar aqueles que te forem enviados, domar tua natureza cruel. Terás que aprender a viver com compreensão e sabedoria. Não poderás magoar aqueles que te cercarem na jornada. Se tiveres sucesso, Deus perdoará teus crimes e teu passado, e poderás enfim deixar teu  barco. Mas se falhares, retornarás ao barco, solitário e devorado pela dor, e dele não sairás jamais. Esse é o desejo de Deus. Se falhares, ouvirás o sino te chamando. E assim será. Vai-te agora.”
E eu me fui, e atraquei minha nau, e alguns anjos me carregaram para fora do holandês voador. Olhei no rosto daqueles anjos e vi, ali, o rosto de companheiros de tripulação. O rosto de homens que mandei punir, que joguei ao mar, que chicoteei, que puni. Mas eles não me olhavam com ódio. Olhavam-me com piedade. Fechei os olhos. Ao longe, ainda pude ouvir o baladar do sino: blém, blém, blém... Rum e cerveja, garçom.
E então despertei em terra, numa cidade diferente de tudo que eu já havia visto. Eu estava no século 21, e muita coisa havia mudado. Mas outras permaneciam as mesmas. Deus não foi justo. Meu coração acostumou-se à solidão. Durante séculos sozinho, não aprendi a amar. Talvez eu não tenha nascido para amar. Meu coração é feito de ódio e rum. Algumas pessoas são assim. Nascem para cumprir missões. A missão é tudo que importa, custe o que custar. Minha missão era ser o capitão do meu navio e fazê-lo chegar com segurança aos portos. E foi o que fiz, e foi pela missão que blasfemei e derramei o sangue de minha tripulação. Nada importava. Eu tinha uma missão.
Mesmo assim, vaguei durante dias em terra. Olhava as pessoas no rosto e também não percebia amor. Deus foi cruel. Talvez o homem não tenha nascido para amar, mas a ira de Dele caiu sobre mim. Não é justo, mas não posso discutir com Deus.
E tanto vagar, e de tanto desamar, vim para nesta espelunca, baby. Estou cansado. Não precisa dizer nada. Apenas tome um último gole comigo. Ouça. Blém, blém, blém... o sino. A sina. O barco me chama. Vou cumprir minha missão. Sou o capitão deste barco. Vou cumprir minha sina e voltar ao comando. Ele está me esperando.
Não chore, baby. Cada um tem o destino que faz. Este é o meu. Eu, o cão pestilento, falhei perante Deus. Hoje, percebo que lobos do mar jamais poderão ter paz. Jamais poderão amar. Jamais conseguirão fazer outras pessoas felizes. A natureza do escorpião. A natureza do lobo. Não há como domá-las. Nem com amor. Não sei amar. Não mereço perdão. Um homem como eu não muda.
Ouça. O barco me chama. Devo voltar a ele. Ouço os sinos. Blém, blém, blém... Não, Deus não me dará uma nova chance. Até a bondade Dele tem limites. Acabou. Tome. Pegue um lenço e seu dinheiro, baby. E um dia você poderá contar a todos que bebeu com o holandês voador. Com o maldito. O cão. E que ele lhe pagou um trago e lhe contou sua história. Guarde esta moeda como lembrança.
E, nas noites de tempestade, se você olhar para o céu, poderá me ver. Eu estarei lá, sozinho no meu barco, cercado de névoas vermelhas, içando velas, segurando o leme, berrando ordens para ninguém, blasfemando contra Deus com uma garrafa de rum nas mãos. Estarei lá como um cachorro sem dono, como uma doença que ninguém quer, como um cão sarnento, como uma maldição solitária. Estarei lá sozinho enfrentando tempestades, vulcões e ventos sem fim. Estarei no meu barco, segurando o leme. E então você saberá que sou eu. O holandês voador.

sexta-feira, 28 de outubro de 2011

"José e Maria", terceiro e último capítulo


Comprei um trinta e oito e com ele pude fazer roubar melhor e ganhar mais dinheiro já não ficava perto do galpão ia para o bairro dos bacanas e quando a chance
aparecia eu metia o trinta e oito na cara no sujeito porque não gosto de roubar mulher acho sacanagem então pego os marmanjos e limpo suas carteiras e eles saem correndo e eu sumo no mapa como uma sombra some na noite e voltava para o galpão com comida boa e bebida melhor ainda Maria nem me perguntava mais onde eu conseguia aquilo ela comia tudo e bebia e ria e dançava e depois eu comia ela ali mesmo nos colchões sujos e as ruas nos olhavam e nos respeitavam e no galpão eu era rei e um dia apareceu outro cara um tal de José que também tinha vindo do interior e era um sujeito legal e ficou amigo de eu mais Maria e também era catador de papel.
            José sabia o que eu fazia mas também não ligava ele também não gostava dos bacanas e dos mariquinhas com seu mundo cheio de ordem e regras e culpas mas tudo isso da boca pra fora porque nas sombras os bacanas fazem sacanagens e traem e roubam de forma chique e dormem com as mulheres dos outros e as mulheres dormem com os maridos dos outros e depois vão para o salão fazer unha e pintar cabelo e os caras vestem a máscara de caras de respeito até cair a noite porque aí não há máscara que resista mas isso é normal do ser humano e desde que o mundo é mundo é assim e tem o mundo dos bacanas e o mundo das ruas e quando os dois mundo se encontram é o Vietnã mas ninguém sabe quem são os mocinhos e os bandidos porquê de noite todo gato é pardo.
            Eu roubava para dar de comer e beber a Maria e já achava que amava Maria e que Maria amava eu e assim o tempo foi passando e José ficou mesmo amigo da gente já bebia e comia com a gente de noite e às vezes até levava comida e uma cachaça fudida de ruim que ele comprava sei lá aonde e só se afastava quando era hora do sexo com Maria aí ele ia pra seu colchão virava e costas e ficava assim até acabar até sentir a
fumaça dos nossos cigarros matarratos então ele voltava para uma última dose de vinho e dizia boa noite fiquem com Deus até amanhã e voltava para colchão e dormia e a gente também dormia até o dia voltar de novo mas eu não tinha certeza se Deus ficava mesmo com a gente mas dormia assim mesmo achando que mesmo se Ele não ficasse com a gente podia dar uma olhadinha de vez em quando mas no fundo eu achava mesmo que ia pro ínferno quando morresse porque acho que Deus não gosta de gente que Ele abandona assim na vida e no mundo tem muita gente assim então deve ser mesmo difícil entrar no céu e não era eu quem ia conseguir.
            De tanto roubar acabei juntando dinheiro e resolvi comprar uma casinha para eu mais Maria morar porque gostava dela e achava que já era hora de tirar ela do galpão e comprei um barraco sem reboco mas com sala um quarto banheiro e cozinha e coloquei uns móveis para gente viver tipo fogão e geladeira e cama e levei Maria para conhecer ela quase morreu de susto e começou a chorar e me abraçou e disse que me amava e que a gente ia ser muito feliz ali coisa e tal essas coisas que dizem todas as mulheres como falava uma música e me beijou como se eu fosse o último e me abraçou de novo e ficamos na casa no mesmo dia José ficou triste mas disse que ia nos visitar e quando ele ia a gente comprava uma carne uma cerveja e ficava ouvindo música no barraco até ficarmos bêbados e aí depois ele ia embora morro abaixo cambaleando e dizendo que ia voltar e eu saía para roubar mais.
            Então eu decidi arrombar casas de bacanas e levar dinheiro e jóias e computador e celular essas coisa fáceis de vender e que dão um dinheiro comprei até uma pampa velha pra pôr tudo em cima e levar embora escolhia sempre casas que estavam vazias ficava um tempão observando e ficava dias e dias de olho pra ver se estava mesmo vazia
e pulava e arrombava na moleza e ia na geladeira e comia alguma coisa e ia embora com a sensação de ter entrado no mundo dos bacanas e levados suas coisas eles nada podiam fazer só chamar a polícia que ia fazer ocorrência e ficava por isso mesmo não deixava pista e roubava em bairros diferentes para despistar os meganhas e até comprei umas coisas chique lá pra casa e Maria não precisava mais trabalhar ficava o dia arrumando a casa e fazendo comida para matar minha fome quando eu chegasse e José continuava aparecendo nos fins de semana e trazia alguma coisa para comer e éramos como irmãos e eu gostava dele e ele sabia o que eu fazia mas nunca tinha me traído nem contado pra ninguém porque ele também gostava de mim e conhecia o código das ruas e sabia que ali quem mandava era eu.
            Então teve um dia de noite que saí pra roubar e vi uma estrela cadente caindo e não saiba se era bom ou mau agouro mas não era mesmo de acreditar nessas coisas e peguei a pampa e fui a um bairro de bacanas sem tanta grana mas que podia render dinheiro assim mesmo e além disso suas casas eram mais fáceis de roubar e achei uma rua que não tinha ninguém e fiquei um tempão olhando uma casa pra ver se não tinha ninguém e estava tudo quieto e escuro e pulei um muro e caí no quintal o cachorro veio me morder e eu cravei minha faca nele porque mesmo com o trinta e oito eu sempre andava com a faca e ele morreu ali mesmo entrei devagar pela porta da cozinha e estava tudo escuro como eu queria a casa devia mesmo estar vazia e fui caminhando no escuro e de repente entrei no quarto e acendi uma luz e vi que tinha uma mulher dormindo na cama uma mulher muito bonita de cabelo louro e perfume bom bem diferente de Maria e aquilo me deixou doido e eu perdi a cabeça fiquei doidaço e tampei a boca dela e ela acordou e tentou gritar mas eu era forte e arranquei a roupa dela e a penetrei enquanto ela chorava e ela nem se debatia mais de tanto chorar mas aí que merda que droga o marido dela chegou e viu o que estava acontecendo e pulou em cima de mim e gritou aí foi o diabo porque tive que atirar nele e a bala entrou na barriga e saiu do outro lado e ele caiu no chão a mulher começou a berrar e ele ficou estrebuchando no chão com o corpo varado e o sangue escorrendo pelo tapete e a mulher enlouqueceu e as luzes das casas do vizinhos começaram a acender e eu pulei o muro de novo e sumi nas trevas na noite e corri como um desgraçado como se tivesse um cachorro doido atrás de mim mas o cachorro era eu e eu afinal tinha matado alguém e sentia uma sensação estranha de torpor e não sabia o que fazer joguei o trinta e oito no esgoto e entrei na pampa e corri para casa para buscar o colo de Maria porque amava Maria e tinha feito essas coisas por ela para dar a ela uma vida melhor e dar a ela de comer e de beber e dar a ela um pouco da vida o cálice sagrado da vida que eu tinha acabado de matar mas ela Maria ia me perdoar porque sabia que tudo que eu fazia era por ela já Deus não sei se ia me perdoar porquê acho mesmo que Ele nunca gostou muito de mim e nem estava preocupado com o quê eu fazia Ele tinha coisas mais importante para se preocupar mas Maria não Maria saberia me perdoar saberia perdoar a coisa ruim que eu tinha feito porquê ela sabe que eu amava ela e tudo que eu fazia era por ela.
            Que merda puta-que-pariu que bosta porque isso tinha que acontecer o cara não tinha nada que ter chegado eu só queria roubar para vender e comprar mais coisas para minha casa e deixar Maria mais feliz Maria merecia ser feliz teve infância difícil foi expulsa de casa e teve que viver nas ruas mas me deu pão quando cheguei era uma pessoa boa que não merecia estar nas ruas por isso roubei pra comprar casa e comida para ela e comprava também roupas e perfumes e ela usava e botou dentadura e seu sorriso ficou o sorriso de gente bacana e ela parecia que estava feliz e eu estava assustado tinha matado um homem e ainda me lembrava da cara dele no chão agonizando para morrer e a mulher berrando e berrando e berrando e o cara morreu ali mesmo com os olhos aberto olhando pra mim o filho da puta nem pra olhar para outro lugar e uma coisa ruim pesava nos meus ombros e eu tinha que chegar em casa e pisava no acelerador da pampa igual um doido e dobrava as esquinas igual um rei e voava pelas ruas igual um astronauta e sonhava com Maria como se fosse um príncipe e afinal cheguei em casa desliguei o carro entrei correndo e fui para o quarto e Maria estava ali nua e transando com José e gemia como gemia quando trepava comigo e eu parei paralisado e Maria me olhou mas não disse nada e José levantou-se depressa pegou minha faca e enfiou na minha barriga e revirou a faca e eu caí no chão feito um saco de batatas mas Maria não gritou enquanto eu via minhas tripas no chão e o sangue manchar o chinelo de bichinho que eu havia dado para ela o mundo é mesmo uma merda não vale um centavo furado uma dose de pinga e agora José era o novo dono das ruas dos vagabundos da nossa laia e só me lembrei de que meu nome era Jesus antes de fechar os olhos ave césar rogai por nós Maria.  

quinta-feira, 27 de outubro de 2011

"José e Maria", Capítulo 2


      Mas o mundo nunca acabava e era aquela merda de sempre de acordar e ir catar latinha e depois vender latinha que saco que bosta não gosto mais disso e queria tirar Maria dessa vida dar a ela um lugar legal onde ela pudesse lavar os cabelos o corpo as roupas e alma e ser feliz e falei isso para ela e ela riu e debochou e falou que nossas vidas era aquilo mesmo aquela merda mesmo e nunca ia mudar porque éramos dois vagabundos esquecidos por Deus e os esquecidos de Deus têm é que viver assim mesmo na merda porque estão sendo castigados por alguma coisa fizeram no passado e eu falei que merda de papo é esse não mereço ser castigado nem você merece e decidi que ia mesmo mudar de vida e ficamos sentados na calçada olhando as pessoas passarem a as pessoas olhavam para a gente com cara de assustado como se fôssemos bichos e íamos morder alguém e às vezes passavam homens elegantes de terno e gravata e falando ao celular e carregando pastas e madames com suas bolsinhas luxuosas e botox no rosto e silicone nos peitos mas não eram peitos como os de Maria esses sim eram reais e eu ficava vendo essa gente e essa gente ficava me vendo e eu via o pneu dos carros girar e girar e pedia um cigarro para um bacana e ele ficava com medo e me dava um cigarro e acendia pra mim com medo de eu bater nele e eu tragava o mundo naquele cigarro e deixava Maria tragar também e depois eu ficava pensando do que é que essa gente tinha
tanto medo talvez fosse medo de gente com eu e Maria tragarmos o mundinho deles e fiquei com muita raiva e disse a Maria que não ia catar mais latas e ela ia ter uma surpresa naquela noite e voltou a rir de mim disse que eu estava louco e que se não catasse latas não ia conseguir nem comer naquela noite e daí levantei e saí e deixei Maria sentada na calçada acabando de fumar o cigarro que o bacana me deu.
            Revirei a lata de lixo como um cachorro vira-lata e achei um caco de vidro de bom tamanho tão grande que assustava qualquer um e peguei o primeiro bacana que apareceu e pedi seu dinheiro e ele tremia da cabeça aos pés e mijou nas calças enquanto me passava a grana e eu ri e mandei ele embora e ele saiu correndo prum lado e eu corri pro outro e não sei quanto tempo eu corri depois cansei e descansei na calçada e contei o dinheiro e vi que era um bom dinheiro e fiquei feliz entrei numa mercearia a caixa me olhou desconfiado mas eu estava pouco me fudendo para ela e para todo mundo que estava lá e comprei um pedaço de salame e uns pães e um vinho barato e voltei pro galpão e mostrei pra Maria ela nem acreditou Nossenhora Virge Maria onde você arrumou dinheiro pra comprar isso disse que tinha achado na rua e ela não perguntou mais nada e naquela noite comemos uma comida chique e bebemos vinho barato e fizemos sexo e sexo Maria era boa de sexo e gemia e gritava e eu achava lindo e a fazia ela gritar ainda mais até cairmos exaustos no chão e dormir e acordei com aquela vontade de vomitar mas lembrei que era vinho e pensei que não ia vomitar vinho porque vinho não era conhaque era chique e tranquei a boca e os dentes e não vomite e dormi de novo com Maria feliz e saciada roncando e soltando peido do meu lado e acordei no outro dia com a barriga ruim e cagando merda molhada e fedendo a vinho e salame que bosta nem comer direito a gente consegue parece que o estômago se acostuma a comer
só umas merdas mesmo e quando tem coisa diferente ele te olha de cara feita e acha ruim mas quero também que meu estômago e minha merda se fodam o que importa é que de noite eu tinha comido salame e vinho e Maria estava feliz.
            O diabo de cair nessa vida é que depois você gosta e não quer mais trabalhar roubar é mais fácil e dá mais dinheiro e gosto de ver a cara dos bacanas quando peço o dinheiro e eles me olham como se eu fosse de outro mundo mas não sou eu sou desse mundo mesmo o mundo que eles pisam é também onde piso pelo menos quando estão nas ruas que é meu mundo o mundo deles é de escritórios e casas bacanas mas só importa agora ter dinheiro para comprar coisas legais e dar para Maria e ver Maria sorrir com promessas de uma noite de sexo e até consegui comprar uns colchões velhos pra gente e um sonzinho onde ouvíamos música de corno à noite gosto dessas músicas falam de amores perdidos e dor de cotovelo e sofrimento e de beber para esquecer o sofrimento e faço Maria gemer enquanto ouço música e bebo e percebi que ela nem saía mais com os outros caras preferia ficar comigo meus vinhos baratos meus salames e nossos colchões.
            Maria nasceu no interior em casa pobre com oito irmãos ela era a caçula e os pais saíam cedo para roça e ela ficava fazendo almoço para quando pai e mãe e irmãos voltassem estivesse tudo pronto até que um dia ela já tinha 17 anos o padrinho filho da puta dela pegou ela sozinha e a violentou dentro de casa e ela era virgem e ficou suja de sangue e os pais chegaram e não acreditaram que o compadre tivesse feito isso e mandaram ela pegar a trouxa de roupa e sumir de casa nunca mais quero te ver disse o pai como você pôde fazer isso com a gente disse a mãe vagabunda disseram os irmãos e ela nem chorou mas ficou cheia de uma tristeza imensa pegou a trouxa de roupa e seguiu pela estradinha de terra que levava à cidade e de lá pegou um ônibus para a capital e tentou achar emprego como empregada mas ninguém quis dar emprego para ela e então as ruas a acolheram as ruas sempre acolhem quem precisa.
            Mas as ruas também têm seu código e você precisa conhecer e respeitar o código das ruas senão te matam igual matam um cachorro sem dono e eu aprendi o código e aprendi que você tem que mostrar quem é que manda e quando tinha que brigar batia com força pro sujeito lembrar da minha mão em seu rosto e nunca mais esquecer eu gostava de dar soco na boca porque aí o sujeito já quebrava os dentes e o sangue escorria e ele gritava xingava e saia correndo com o tempo fui ficando melhor comprei faca afiada e com ela me impus nas ruas pelos menos entre os vagabundos da minha laia e eu te digo que as ruas são uma guerra que nem essas que passam em cinema e tem gente que mata e deixa o corpo sangrando no meio da rua pra demarcar território por vingança por ciúme por dinheiro ou só por um gole de cachaça isso é as ruas e com o tempo você aprende porque se não aprender você está fudido e ninguém te respeita e você vira um vagabundo qualquer e eu te digo que as ruas são um Vietnã com ônibus azuis pele de cobra e romanos e gladiadores nós que vamos morrer saudamos césar o fim de tudo de todos os sonhos e bombas caindo na sua cabeça e gente sem esperança mas acho que é assim em todo lugar hoje mesmo vi num jornal um filho de um bacana matou o pai e a mãe ele tava doidão demais é a pele de cobra e outro tava doidão no carro e atropelou mãe e filha e matou as duas mas foi solto porquê bacana não fica preso.