segunda-feira, 31 de outubro de 2011

O holandês voador (baseado numa velha lenda do mar)


                                                                     O holandês voador


                                                          1 – Tome mais um gole, baby
                                          
Vou beber mais uma cerveja, baby. Sirva-se também. Não sei seu nome. Não importa. Mas preciso de você. Preciso desabafar, dizer quem sou. Posso pagar pelo seu tempo. Posso respirar o perfume vagabundo e o esmalte cor de sangue que você usa para ganhar a vida. Posso suportar essa roupa suja. Mas agora preciso desabafar. Preciso do seu tempo. Não quero seu sexo. Ouça minha história, baby. Só isso. Pago bem.
Sou o holandês voador. O maldito. O condenado a vagar eternamente pelos mares por ter ofendido a Deus.
Nasci na Holanda no século 15. Já vi mares revoltos de ondas gigantescas, já vi águas calmas refletindo a lua, já vi de tudo que vive no mar. Eu e meu barco, pobre barco de madeira podre, de leme escuro e conformado de quem já sabe o que vem pela frente, de velas esfarrapadas, ondas, vento, sal, medo, frio, escuro, solidão. E eu sempre lá, baby, um condenado a vagar eternamente, enquanto houver noite e dia, dia e noite, enquanto o sol sair todas as manhãs. Sou um cachorro lazarento, um cão pestilento e solitário que todos chutam, uivando para a lua como quem quer dividir a solidão.
Não tente entender, baby. Apenas me ouça. Apenas finja que sou um homem comum, que dorme tranquilo todas as noites como dormem os que estão em terra firme e porto seguro. Como dormem os que vêm aqui em busca do seu sexo e depois voltam para casa embriagados de prazer e cachaça fazendo juras de amor à mulher. Finja que sou um deles, baby. Posso pagar pelo seu tempo.
Não existe terra firme para mim. Minha sina ainda não terminou. Já engoli água salgada, xinguei ventos, amaldiçoei ondas e expulsei, com uma arma tosca e enferrujada o anjo divino e iluminado que pousou na proa do meu barco trazendo mensagens do céu. Sou um condenado e o barco ainda balança sob meus pés. O barco quer o mar. E no mar não há terra firme. Só eu. Eu a solidão. Solidão e leme. Leme e lanterna na popa. E o sino. E o sino badala sempre e, badalando, o sino lembra minha sina. Blém, blém, blém...
Veja, baby. Veja que verme estou. Veja que farrapo sou. Meu barco está velho e carcomido. O casco está começando a rachar. Em breve, o mar estará entrando por ali. E estou cansado. Estou tão cansado, e meus ouvidos estão tão cheios de sal, que sequer consigo ouvir a canção de ninar que você poderia cantar para mim. Cante para mim, baby. Eu pago. E minhas mãos, tão grossas e calejadas de manejar o leme, já nem conseguem fazer carinho na tua pele branca e macia, onde muitos homens já deslizaram as mãos em busca de prazer. Tome mais uma cerveja, baby. Garçom, traga rum para mim.
Ouça. O sino do barco está tocando de novo. Blém, blém, blém...Tento fingir que não ouço. Mas é inútil. Bobagem. Ele me chama. É o sino. É a sina. Terei de ir, baby. Mas antes, preciso desabafar. Fique comigo só mais um minuto. Posso pagar pelo seu tempo. Seu tempo é tudo que me resta.

                                                           2 – O anjo

Me ouça baby, com esses olhos enormes de quem não dorme carregados de maquiagem podre e esse batom negro como as trevas. Meu coração é um campo de batalhas. Longas batalhas. Batalhas sangrentas. Batalhas cruéis. Já comandei marujos que devastaram vidas, vilas, homens, mulheres, crianças. Já comandei exércitos que dilaceraram famílias, desonraram crenças. Ri na cara da fé. Cuspi em esperanças. Comandei legiões que, em nome de reis insanos, semearam desespero e dor.
Comandei meu barco, minha nau, com orgulho de aço e punhos de ferro. Coloquei homens a ferro por, famintos, roubarem comida. Queriam pão. Dei-lhes morte. Chicoteei homens por demonstrarem medo. Fui um lobo. Um lobo sanguinário, sem alma, sem nada, sem vida. Um lobo em terra, nas estepes, selvagem. Um lobo do mar, sem deus. Apenas um lobo.
Naquela noite fria e tormentosa, a tempestade assolava meu barco. Lembro-me bem. Ondas gigantescas desabavam a bombordo e estibordo. Meus homens tiveram medo. Pediram para recolher velas e reduzir a velocidade. Pediram para que eu lhes salvasse a vida. Eu pensei: danem-se. Era meu barco. Eu era o capitão. Eu era o poder. Dane-se o medo dos homens. Dane-se os homens. Que me importam os homens? Danem-se! Icem todas as velas! Velocidade máxima!
Quem é Deus para me desafiar? Quem é Deus para mandar ondas, chuvas e ventos contra meu barco? Posso vencer Deus. Posso vencer o mar. E quem não me obedecer será jogado ao mar. Danem-se. Se têm medo, deveriam ter ficado em terra. Aqui é meu barco. Aqui mando eu. Deus não manda aqui. Nem o mar. Nem as ondas. Mando eu. Eu. Eu...outra cerveja e outra dose de rum, garçom.
Então, ele apareceu. Primeiro, como uma luz estranha, vindo do nada, fantasmagórica, sinistra. Apenas uma luz, que cegava a tripulação. Assim ficou por segundos. Depois, tomou forma. A forma de um anjo. Um anjo de Deus. A tempestade parou. O vento virou brisa. A noite ficou calma e leve. Os homens se ajoelharam. Ele era o mensageiro de Deus. Ele era a resposta às preces de todos os homens que ali estavam. Ele estava ali para salvar-lhes a vida.
Mas ele era um intruso na minha nau. Ali, só havia espaço para um deus, e esse deus era eu. A tripulação se ajoelhou para agradecer. Meu sangue ferveu. Saquei a arma e ordenei que ele se retirasse do meu barco. Ele era um intruso. Eu não podia admitir intrusos em meu barco, nem mesmo os que fossem enviados por Deus. Eu era o capitão. Ele apenas me olhou. Ordenei mais uma vez. Ele não se mexeu. Ordenei de novo. Ele continuava ali. Xinguei. Blasfemei. E então disparei. A bala saiu da minha arma, bateu em seu peito e voltou em minha direção. Explodiu em meu braço. Uma dor quente tomou conta do meu corpo. O sangue manchou minha camisa. Sangue. Meu sangue. Fui tomado pela fúria.
Saquei a espada e avancei contra ele. Tentei furar-lhe o peito. Cortar-lhe a cabeça. Mas, de repente, como num sonho, senti-me completamente paralisado. A espada continuava em minha mão, mas eu não conseguia caminhar. Até mesmo o sangue da bala havia parado de jorrar. Tentei gritar para a tripulação, mas não conseguia me mexer.
Então, ele falou, Falou sem mexer os lábios. Falou de uma forma que só eu escutei. E foi mais ou menos assim que ele falou ele: “És capitão de teu barco, mas não és dono da vida desses homens. Esses homens pertencem a Deus. És capitão de teu barco, mas não és Deus. Há muito temos te observado. Temos acompanhado tua crueldade. Temos acompanhado teu rastro de destruição. Sabemos tudo sobre ti. Sabemos de teu desprezo pela vida. Sabemos que és uma alma morta. Veja tua tripulação. Almas simples que sabem reconhecer a força e a presença de Deus. Mas tu, com sua empáfia, com sua soberba, com teu orgulho, simplesmente não consegue compreender o que é isso. Condenou-os à morte. Pouco te importa as vidas desses homens. Pouco te importa a vida. Pois bem. Deus decidiu que esses homens serão poupados da morte. Deus ouviu as preces desses homens. Deus decidiu que esses homens viverão essa noite. Que, apesar de tua natureza sanguinária, esses homens voltarão para suas casas. Mas tu não. Tu não mereces voltar ao convívio dos homens. Tu permanecerás eternamente neste barco, completamente só. Estás condenado a vagar solitário por mares e céus eternamente. Estás condenado a permanecer neste barco, completamente só, enquanto a Terra for Terra, enquanto o sol se levantar todos os dias. Estás condenado por Deus a permanecer neste barco até o fim dos tempos. E, como um louco, tomarás o leme e tentará encontrar o caminho de casa. Como um louco, verás ondas desabarem sobre ti. Como um louco, praguejarás contra Deus e contra o mundo. E então verás que Deus não escuta tuas pragas. O mundo saberá quem és, o que fizestes e qual foi sua danação. Os que te olharem também estarão condenados. Conhecerás a mais profunda solidão, o sofrimento, a dor e a desesperança, que rasgarão tua alma assim como a espada rasga a carne. Viverás durante séculos, até que Deus tenha piedade de ti. Serás conhecido como o amaldiçoado, o cão das noites chuvosas. Nessas noites, todos verão teu barco pairando sobre as águas, como um fantasma. Terás que lutar contra os monstros que habitam em teu coração. E aí talvez um dia Deus tenha piedade de ti. Talvez algum dia Deus lhe conceda uma nova oportunidade. Caso contrário, estarás condenado a sofrer completamente só, até que chegue o tempo em que o mar secará. Essa é tua maldição.”

                                   3 – Um fantasma movido a ódio e rum

E dito isso o anjo sumiu. Meu corpo voltou a se mexer a tempo de ver um redemoinho medonho e gigantesco se formando no mar. Vi minha nau embicar em direção ao redemoinho e tremi. Mas a tripulação estava estranhamente calma. Vi meu barco ser engolido pelo redemoinho. Tentei segurar-me às cordas mas não consegui. Senti a água fria do mar cortando minha pele como faca. Fechei os olhos e pensei: morte. Vou morrer. Está tudo acabado. E nada mais vi.
Não sei quanto tempo se passou. Quando abri de novo os olhos, eu continuava no meu barco. Completamente só. Não sabia onde foram parar meus homens. Não sabia o que havia sido feito de mim. Então, percebi que era verdade. O anjo estava certo. Eu estava amaldiçoado. Encha mais um copo, baby. Eu pago.
Em vão clamei pela tripulação. Onde estavam todos? Peterson! Por que abandonastes o leme? Volta, ou serás castigado! Joanhess! Já não mandei içar as velas? O que fazes que ainda não me obedecestes? Van Nielsen! Hans! Von Helmultz! Winter! Onde estão vocês? Por que não aparecem? Estou mandando que apareçam. O capitão está dando uma ordem. Sou o capitão e ainda mando nesse barco. Onde estão vocês? Como ousaram desertar? Apareçam ou serão punidos! Eu os colocarei a ferros! Serão jogados ao mar! Onde estão, seus bastardos?
Mas ninguém respondeu. Apenas o vento, que balançava a vela e fazia o leme girar sem rumo. Na cabine, o sino tocava. Blém, blém, blém...Ninguém na proa. Ninguém na popa. Ninguém, a não ser vento e mar. E rum, um rum amargo e interminável, com gosto de fel. E então afinal percebi que, tal como disse o anjo, assim seria dali para frente. Eu, meu barco fantasma e o mar. Uma estranha névoa vermelha nos cercava, como um sinal da vingança de Deus. Nada mais.
E assim naveguei durante séculos. Conheci a aurora boreal e os mistérios do céu. Vi estrelas morrendo e outras nascendo. Deixei de ser homem de carne e osso. Virei um fantasma maldito. Um fantasma movido a rum e ódio de Deus, pela maldição, e dos homens, por suas fraquezas. Às vezes, conseguia ver naus distantes nas noites em que as tempestades não eram tão fortes. Aproximava-me. Girava o leme do barco na direção da proa de navios desconhecidos. E, por alguns segundos, percebia que podia ser visto. E, por alguns segundos, algum pobre marujo da vigia conseguia ver meu barco, já conhecido como holandês voador, pairando acima do mar, envolto na névoa vermelha. E ele via tanto ódio, tanta tristeza e tanta solidão que a morte o carregava ali mesmo. Eu ria.
E assim naveguei durante séculos. Continuei enfrentando ondas gigantescas, ventos indomáveis. Às vezes, a solidão era tanta que eu gritava. Louco, fazia o leme girar voltas sem fim. Bêbado de rum, disparava minha arma contra mim. E sentia a bala entrando em minha carne, embora não tivesse mais carne. E sentia dor, embora não tivesse mais corpo. E continuava ali, como um cachorro sem dono, como um maldito, como uma doença sem cura, como um arrepio na espinha, como uma peste, como um sinal de desgraça, como o prenúncio da morte, como um símbolo do castigo divino. Eu, o holandês voador. Aquele que ninguém quer ver, aquele que todos amaldiçoam. E eu berrava e gritava, e amaldiçoava, e ria de bêbado, e bebia aquele rum de fel sem parar, como se fosse o cálice da vida. E, bêbado, vomitava rum para tomar mais rum e continuar bêbado, e berrando, e amaldiçoando, e praguejando e rindo da minha embriaguês. E chegou o tempo em que até mesmo olhar para céu nas noites de tempestade era proibido para os navegantes, para que não vissem o holandês voador.
E o tempo passou, e meu ódio foi ficando fraco, a não ser quando vinham as tempestades e o traziam de volta. Restou a desesperança. E, em desesperança atravessei novos séculos, enfrentei novas tempestades, recolhi velas, toquei o sino (blém, blém, blém) e girei o leme. Em desesperança, deixava-me cair solitário na proa do barco, olhando para o horizonte sem fim. E via apenas mar, e vento, e tempestades, e a vela, e ouvia o sino. E a desesperança era como a espada rasgando minha carne que não era carne, meu corpo que não era mais corpo, minha alma que não era mais alma.

                                           4 – Nas noites de tempestade

E o tempo passou, e a desesperança cresceu e tomou conta do meu barco. Ás vezes, fazia uma calmaria infernal, sem um único vento, uma única brisa. E as velas não se mexiam, o leme sequer se movimentava. Até o sino permanecia estranhamente calado. E o barco permanecia dias, semanas, numa calmaria insuportável, tão sem fim quanto meu sofrimento, tão profunda quanto minha solidão. E assim se passaram séculos, e eu não mais amaldiçoava, não mais gritava, não mais odiava, não mais chorava, não mais bebia aquele rum com gosto de inferno. Só o sino (blém, blém, blém) me lembrava da minha sina, da maldição, do peso e da ira de Deus no meu coração.
E então, numa noite calma, as ondas aquietaram-se. O vento parou. O anjo apareceu novamente. O mesmo anjo, o mesmo rosto duro, a mesma luz. As mesmas asas, o mesmo manto. E então ele falou, e era uma voz de trovão, que entrava na minha cabeça sem que ele abrisse a boca uma única vez. E sua voz quase arrebentava minha cabeça, e fazia minhas veias pulsarem tanto que tive medo que estourassem e jorrassem rum. E ele apenas me olhava, e suas palavras começaram a ecoar na minha cabeça mais forte que as badaladas do meu sino.
E ele disse mais ou menos isso: “Homem maldito, homem que, por sua crueldade, fostes amaldiçoado por todos, Deus está disposto a dar-lhe uma única chance de reparar o mal que fizestes. É hora de completar tua sina. Daqui a três luas, deixarás teu barco. Atracarás num porto onde anjos estarão te aguardando. Descerás e seguirás com eles. E então, terá uma nova oportunidade de retornar à terra dos homens. E ali, para encerrar a maldição, terás que encontrar uma mulher que o ame. E terá que aprender a amar, não apenas a ela, mas a todos aqueles que cruzarem teu caminho. Essa será tua  missão. Amar aquela que te amar, amar aqueles que te forem enviados, domar tua natureza cruel. Terás que aprender a viver com compreensão e sabedoria. Não poderás magoar aqueles que te cercarem na jornada. Se tiveres sucesso, Deus perdoará teus crimes e teu passado, e poderás enfim deixar teu  barco. Mas se falhares, retornarás ao barco, solitário e devorado pela dor, e dele não sairás jamais. Esse é o desejo de Deus. Se falhares, ouvirás o sino te chamando. E assim será. Vai-te agora.”
E eu me fui, e atraquei minha nau, e alguns anjos me carregaram para fora do holandês voador. Olhei no rosto daqueles anjos e vi, ali, o rosto de companheiros de tripulação. O rosto de homens que mandei punir, que joguei ao mar, que chicoteei, que puni. Mas eles não me olhavam com ódio. Olhavam-me com piedade. Fechei os olhos. Ao longe, ainda pude ouvir o baladar do sino: blém, blém, blém... Rum e cerveja, garçom.
E então despertei em terra, numa cidade diferente de tudo que eu já havia visto. Eu estava no século 21, e muita coisa havia mudado. Mas outras permaneciam as mesmas. Deus não foi justo. Meu coração acostumou-se à solidão. Durante séculos sozinho, não aprendi a amar. Talvez eu não tenha nascido para amar. Meu coração é feito de ódio e rum. Algumas pessoas são assim. Nascem para cumprir missões. A missão é tudo que importa, custe o que custar. Minha missão era ser o capitão do meu navio e fazê-lo chegar com segurança aos portos. E foi o que fiz, e foi pela missão que blasfemei e derramei o sangue de minha tripulação. Nada importava. Eu tinha uma missão.
Mesmo assim, vaguei durante dias em terra. Olhava as pessoas no rosto e também não percebia amor. Deus foi cruel. Talvez o homem não tenha nascido para amar, mas a ira de Dele caiu sobre mim. Não é justo, mas não posso discutir com Deus.
E tanto vagar, e de tanto desamar, vim para nesta espelunca, baby. Estou cansado. Não precisa dizer nada. Apenas tome um último gole comigo. Ouça. Blém, blém, blém... o sino. A sina. O barco me chama. Vou cumprir minha missão. Sou o capitão deste barco. Vou cumprir minha sina e voltar ao comando. Ele está me esperando.
Não chore, baby. Cada um tem o destino que faz. Este é o meu. Eu, o cão pestilento, falhei perante Deus. Hoje, percebo que lobos do mar jamais poderão ter paz. Jamais poderão amar. Jamais conseguirão fazer outras pessoas felizes. A natureza do escorpião. A natureza do lobo. Não há como domá-las. Nem com amor. Não sei amar. Não mereço perdão. Um homem como eu não muda.
Ouça. O barco me chama. Devo voltar a ele. Ouço os sinos. Blém, blém, blém... Não, Deus não me dará uma nova chance. Até a bondade Dele tem limites. Acabou. Tome. Pegue um lenço e seu dinheiro, baby. E um dia você poderá contar a todos que bebeu com o holandês voador. Com o maldito. O cão. E que ele lhe pagou um trago e lhe contou sua história. Guarde esta moeda como lembrança.
E, nas noites de tempestade, se você olhar para o céu, poderá me ver. Eu estarei lá, sozinho no meu barco, cercado de névoas vermelhas, içando velas, segurando o leme, berrando ordens para ninguém, blasfemando contra Deus com uma garrafa de rum nas mãos. Estarei lá como um cachorro sem dono, como uma doença que ninguém quer, como um cão sarnento, como uma maldição solitária. Estarei lá sozinho enfrentando tempestades, vulcões e ventos sem fim. Estarei no meu barco, segurando o leme. E então você saberá que sou eu. O holandês voador.

sexta-feira, 28 de outubro de 2011

"José e Maria", terceiro e último capítulo


Comprei um trinta e oito e com ele pude fazer roubar melhor e ganhar mais dinheiro já não ficava perto do galpão ia para o bairro dos bacanas e quando a chance
aparecia eu metia o trinta e oito na cara no sujeito porque não gosto de roubar mulher acho sacanagem então pego os marmanjos e limpo suas carteiras e eles saem correndo e eu sumo no mapa como uma sombra some na noite e voltava para o galpão com comida boa e bebida melhor ainda Maria nem me perguntava mais onde eu conseguia aquilo ela comia tudo e bebia e ria e dançava e depois eu comia ela ali mesmo nos colchões sujos e as ruas nos olhavam e nos respeitavam e no galpão eu era rei e um dia apareceu outro cara um tal de José que também tinha vindo do interior e era um sujeito legal e ficou amigo de eu mais Maria e também era catador de papel.
            José sabia o que eu fazia mas também não ligava ele também não gostava dos bacanas e dos mariquinhas com seu mundo cheio de ordem e regras e culpas mas tudo isso da boca pra fora porque nas sombras os bacanas fazem sacanagens e traem e roubam de forma chique e dormem com as mulheres dos outros e as mulheres dormem com os maridos dos outros e depois vão para o salão fazer unha e pintar cabelo e os caras vestem a máscara de caras de respeito até cair a noite porque aí não há máscara que resista mas isso é normal do ser humano e desde que o mundo é mundo é assim e tem o mundo dos bacanas e o mundo das ruas e quando os dois mundo se encontram é o Vietnã mas ninguém sabe quem são os mocinhos e os bandidos porquê de noite todo gato é pardo.
            Eu roubava para dar de comer e beber a Maria e já achava que amava Maria e que Maria amava eu e assim o tempo foi passando e José ficou mesmo amigo da gente já bebia e comia com a gente de noite e às vezes até levava comida e uma cachaça fudida de ruim que ele comprava sei lá aonde e só se afastava quando era hora do sexo com Maria aí ele ia pra seu colchão virava e costas e ficava assim até acabar até sentir a
fumaça dos nossos cigarros matarratos então ele voltava para uma última dose de vinho e dizia boa noite fiquem com Deus até amanhã e voltava para colchão e dormia e a gente também dormia até o dia voltar de novo mas eu não tinha certeza se Deus ficava mesmo com a gente mas dormia assim mesmo achando que mesmo se Ele não ficasse com a gente podia dar uma olhadinha de vez em quando mas no fundo eu achava mesmo que ia pro ínferno quando morresse porque acho que Deus não gosta de gente que Ele abandona assim na vida e no mundo tem muita gente assim então deve ser mesmo difícil entrar no céu e não era eu quem ia conseguir.
            De tanto roubar acabei juntando dinheiro e resolvi comprar uma casinha para eu mais Maria morar porque gostava dela e achava que já era hora de tirar ela do galpão e comprei um barraco sem reboco mas com sala um quarto banheiro e cozinha e coloquei uns móveis para gente viver tipo fogão e geladeira e cama e levei Maria para conhecer ela quase morreu de susto e começou a chorar e me abraçou e disse que me amava e que a gente ia ser muito feliz ali coisa e tal essas coisas que dizem todas as mulheres como falava uma música e me beijou como se eu fosse o último e me abraçou de novo e ficamos na casa no mesmo dia José ficou triste mas disse que ia nos visitar e quando ele ia a gente comprava uma carne uma cerveja e ficava ouvindo música no barraco até ficarmos bêbados e aí depois ele ia embora morro abaixo cambaleando e dizendo que ia voltar e eu saía para roubar mais.
            Então eu decidi arrombar casas de bacanas e levar dinheiro e jóias e computador e celular essas coisa fáceis de vender e que dão um dinheiro comprei até uma pampa velha pra pôr tudo em cima e levar embora escolhia sempre casas que estavam vazias ficava um tempão observando e ficava dias e dias de olho pra ver se estava mesmo vazia
e pulava e arrombava na moleza e ia na geladeira e comia alguma coisa e ia embora com a sensação de ter entrado no mundo dos bacanas e levados suas coisas eles nada podiam fazer só chamar a polícia que ia fazer ocorrência e ficava por isso mesmo não deixava pista e roubava em bairros diferentes para despistar os meganhas e até comprei umas coisas chique lá pra casa e Maria não precisava mais trabalhar ficava o dia arrumando a casa e fazendo comida para matar minha fome quando eu chegasse e José continuava aparecendo nos fins de semana e trazia alguma coisa para comer e éramos como irmãos e eu gostava dele e ele sabia o que eu fazia mas nunca tinha me traído nem contado pra ninguém porque ele também gostava de mim e conhecia o código das ruas e sabia que ali quem mandava era eu.
            Então teve um dia de noite que saí pra roubar e vi uma estrela cadente caindo e não saiba se era bom ou mau agouro mas não era mesmo de acreditar nessas coisas e peguei a pampa e fui a um bairro de bacanas sem tanta grana mas que podia render dinheiro assim mesmo e além disso suas casas eram mais fáceis de roubar e achei uma rua que não tinha ninguém e fiquei um tempão olhando uma casa pra ver se não tinha ninguém e estava tudo quieto e escuro e pulei um muro e caí no quintal o cachorro veio me morder e eu cravei minha faca nele porque mesmo com o trinta e oito eu sempre andava com a faca e ele morreu ali mesmo entrei devagar pela porta da cozinha e estava tudo escuro como eu queria a casa devia mesmo estar vazia e fui caminhando no escuro e de repente entrei no quarto e acendi uma luz e vi que tinha uma mulher dormindo na cama uma mulher muito bonita de cabelo louro e perfume bom bem diferente de Maria e aquilo me deixou doido e eu perdi a cabeça fiquei doidaço e tampei a boca dela e ela acordou e tentou gritar mas eu era forte e arranquei a roupa dela e a penetrei enquanto ela chorava e ela nem se debatia mais de tanto chorar mas aí que merda que droga o marido dela chegou e viu o que estava acontecendo e pulou em cima de mim e gritou aí foi o diabo porque tive que atirar nele e a bala entrou na barriga e saiu do outro lado e ele caiu no chão a mulher começou a berrar e ele ficou estrebuchando no chão com o corpo varado e o sangue escorrendo pelo tapete e a mulher enlouqueceu e as luzes das casas do vizinhos começaram a acender e eu pulei o muro de novo e sumi nas trevas na noite e corri como um desgraçado como se tivesse um cachorro doido atrás de mim mas o cachorro era eu e eu afinal tinha matado alguém e sentia uma sensação estranha de torpor e não sabia o que fazer joguei o trinta e oito no esgoto e entrei na pampa e corri para casa para buscar o colo de Maria porque amava Maria e tinha feito essas coisas por ela para dar a ela uma vida melhor e dar a ela de comer e de beber e dar a ela um pouco da vida o cálice sagrado da vida que eu tinha acabado de matar mas ela Maria ia me perdoar porque sabia que tudo que eu fazia era por ela já Deus não sei se ia me perdoar porquê acho mesmo que Ele nunca gostou muito de mim e nem estava preocupado com o quê eu fazia Ele tinha coisas mais importante para se preocupar mas Maria não Maria saberia me perdoar saberia perdoar a coisa ruim que eu tinha feito porquê ela sabe que eu amava ela e tudo que eu fazia era por ela.
            Que merda puta-que-pariu que bosta porque isso tinha que acontecer o cara não tinha nada que ter chegado eu só queria roubar para vender e comprar mais coisas para minha casa e deixar Maria mais feliz Maria merecia ser feliz teve infância difícil foi expulsa de casa e teve que viver nas ruas mas me deu pão quando cheguei era uma pessoa boa que não merecia estar nas ruas por isso roubei pra comprar casa e comida para ela e comprava também roupas e perfumes e ela usava e botou dentadura e seu sorriso ficou o sorriso de gente bacana e ela parecia que estava feliz e eu estava assustado tinha matado um homem e ainda me lembrava da cara dele no chão agonizando para morrer e a mulher berrando e berrando e berrando e o cara morreu ali mesmo com os olhos aberto olhando pra mim o filho da puta nem pra olhar para outro lugar e uma coisa ruim pesava nos meus ombros e eu tinha que chegar em casa e pisava no acelerador da pampa igual um doido e dobrava as esquinas igual um rei e voava pelas ruas igual um astronauta e sonhava com Maria como se fosse um príncipe e afinal cheguei em casa desliguei o carro entrei correndo e fui para o quarto e Maria estava ali nua e transando com José e gemia como gemia quando trepava comigo e eu parei paralisado e Maria me olhou mas não disse nada e José levantou-se depressa pegou minha faca e enfiou na minha barriga e revirou a faca e eu caí no chão feito um saco de batatas mas Maria não gritou enquanto eu via minhas tripas no chão e o sangue manchar o chinelo de bichinho que eu havia dado para ela o mundo é mesmo uma merda não vale um centavo furado uma dose de pinga e agora José era o novo dono das ruas dos vagabundos da nossa laia e só me lembrei de que meu nome era Jesus antes de fechar os olhos ave césar rogai por nós Maria.  

quinta-feira, 27 de outubro de 2011

"José e Maria", Capítulo 2


      Mas o mundo nunca acabava e era aquela merda de sempre de acordar e ir catar latinha e depois vender latinha que saco que bosta não gosto mais disso e queria tirar Maria dessa vida dar a ela um lugar legal onde ela pudesse lavar os cabelos o corpo as roupas e alma e ser feliz e falei isso para ela e ela riu e debochou e falou que nossas vidas era aquilo mesmo aquela merda mesmo e nunca ia mudar porque éramos dois vagabundos esquecidos por Deus e os esquecidos de Deus têm é que viver assim mesmo na merda porque estão sendo castigados por alguma coisa fizeram no passado e eu falei que merda de papo é esse não mereço ser castigado nem você merece e decidi que ia mesmo mudar de vida e ficamos sentados na calçada olhando as pessoas passarem a as pessoas olhavam para a gente com cara de assustado como se fôssemos bichos e íamos morder alguém e às vezes passavam homens elegantes de terno e gravata e falando ao celular e carregando pastas e madames com suas bolsinhas luxuosas e botox no rosto e silicone nos peitos mas não eram peitos como os de Maria esses sim eram reais e eu ficava vendo essa gente e essa gente ficava me vendo e eu via o pneu dos carros girar e girar e pedia um cigarro para um bacana e ele ficava com medo e me dava um cigarro e acendia pra mim com medo de eu bater nele e eu tragava o mundo naquele cigarro e deixava Maria tragar também e depois eu ficava pensando do que é que essa gente tinha
tanto medo talvez fosse medo de gente com eu e Maria tragarmos o mundinho deles e fiquei com muita raiva e disse a Maria que não ia catar mais latas e ela ia ter uma surpresa naquela noite e voltou a rir de mim disse que eu estava louco e que se não catasse latas não ia conseguir nem comer naquela noite e daí levantei e saí e deixei Maria sentada na calçada acabando de fumar o cigarro que o bacana me deu.
            Revirei a lata de lixo como um cachorro vira-lata e achei um caco de vidro de bom tamanho tão grande que assustava qualquer um e peguei o primeiro bacana que apareceu e pedi seu dinheiro e ele tremia da cabeça aos pés e mijou nas calças enquanto me passava a grana e eu ri e mandei ele embora e ele saiu correndo prum lado e eu corri pro outro e não sei quanto tempo eu corri depois cansei e descansei na calçada e contei o dinheiro e vi que era um bom dinheiro e fiquei feliz entrei numa mercearia a caixa me olhou desconfiado mas eu estava pouco me fudendo para ela e para todo mundo que estava lá e comprei um pedaço de salame e uns pães e um vinho barato e voltei pro galpão e mostrei pra Maria ela nem acreditou Nossenhora Virge Maria onde você arrumou dinheiro pra comprar isso disse que tinha achado na rua e ela não perguntou mais nada e naquela noite comemos uma comida chique e bebemos vinho barato e fizemos sexo e sexo Maria era boa de sexo e gemia e gritava e eu achava lindo e a fazia ela gritar ainda mais até cairmos exaustos no chão e dormir e acordei com aquela vontade de vomitar mas lembrei que era vinho e pensei que não ia vomitar vinho porque vinho não era conhaque era chique e tranquei a boca e os dentes e não vomite e dormi de novo com Maria feliz e saciada roncando e soltando peido do meu lado e acordei no outro dia com a barriga ruim e cagando merda molhada e fedendo a vinho e salame que bosta nem comer direito a gente consegue parece que o estômago se acostuma a comer
só umas merdas mesmo e quando tem coisa diferente ele te olha de cara feita e acha ruim mas quero também que meu estômago e minha merda se fodam o que importa é que de noite eu tinha comido salame e vinho e Maria estava feliz.
            O diabo de cair nessa vida é que depois você gosta e não quer mais trabalhar roubar é mais fácil e dá mais dinheiro e gosto de ver a cara dos bacanas quando peço o dinheiro e eles me olham como se eu fosse de outro mundo mas não sou eu sou desse mundo mesmo o mundo que eles pisam é também onde piso pelo menos quando estão nas ruas que é meu mundo o mundo deles é de escritórios e casas bacanas mas só importa agora ter dinheiro para comprar coisas legais e dar para Maria e ver Maria sorrir com promessas de uma noite de sexo e até consegui comprar uns colchões velhos pra gente e um sonzinho onde ouvíamos música de corno à noite gosto dessas músicas falam de amores perdidos e dor de cotovelo e sofrimento e de beber para esquecer o sofrimento e faço Maria gemer enquanto ouço música e bebo e percebi que ela nem saía mais com os outros caras preferia ficar comigo meus vinhos baratos meus salames e nossos colchões.
            Maria nasceu no interior em casa pobre com oito irmãos ela era a caçula e os pais saíam cedo para roça e ela ficava fazendo almoço para quando pai e mãe e irmãos voltassem estivesse tudo pronto até que um dia ela já tinha 17 anos o padrinho filho da puta dela pegou ela sozinha e a violentou dentro de casa e ela era virgem e ficou suja de sangue e os pais chegaram e não acreditaram que o compadre tivesse feito isso e mandaram ela pegar a trouxa de roupa e sumir de casa nunca mais quero te ver disse o pai como você pôde fazer isso com a gente disse a mãe vagabunda disseram os irmãos e ela nem chorou mas ficou cheia de uma tristeza imensa pegou a trouxa de roupa e seguiu pela estradinha de terra que levava à cidade e de lá pegou um ônibus para a capital e tentou achar emprego como empregada mas ninguém quis dar emprego para ela e então as ruas a acolheram as ruas sempre acolhem quem precisa.
            Mas as ruas também têm seu código e você precisa conhecer e respeitar o código das ruas senão te matam igual matam um cachorro sem dono e eu aprendi o código e aprendi que você tem que mostrar quem é que manda e quando tinha que brigar batia com força pro sujeito lembrar da minha mão em seu rosto e nunca mais esquecer eu gostava de dar soco na boca porque aí o sujeito já quebrava os dentes e o sangue escorria e ele gritava xingava e saia correndo com o tempo fui ficando melhor comprei faca afiada e com ela me impus nas ruas pelos menos entre os vagabundos da minha laia e eu te digo que as ruas são uma guerra que nem essas que passam em cinema e tem gente que mata e deixa o corpo sangrando no meio da rua pra demarcar território por vingança por ciúme por dinheiro ou só por um gole de cachaça isso é as ruas e com o tempo você aprende porque se não aprender você está fudido e ninguém te respeita e você vira um vagabundo qualquer e eu te digo que as ruas são um Vietnã com ônibus azuis pele de cobra e romanos e gladiadores nós que vamos morrer saudamos césar o fim de tudo de todos os sonhos e bombas caindo na sua cabeça e gente sem esperança mas acho que é assim em todo lugar hoje mesmo vi num jornal um filho de um bacana matou o pai e a mãe ele tava doidão demais é a pele de cobra e outro tava doidão no carro e atropelou mãe e filha e matou as duas mas foi solto porquê bacana não fica preso.

quarta-feira, 26 de outubro de 2011

José e Maria, um conto em três capítulos de Paulo Paiva

                                                    José e Maria
                                                  
Estou de saco cheio dessa merda toda que bosta acordo todo dia e é a mesma coisa a cabeça dói de ressaca não sei quanto bebi e vomitei no chão todo essa noite não sei o que leva alguém a ser assim mas acho que não tem jeito isso é coisa de gente feito eu sem eira nem beira coisa de vagabundo as pessoas me olham e riem de mim e da minha roupa suja de vômito e vida mas estou cagando para elas e elas que se danem no fogo dos infernos e me deixem em paz que o diabo as carregue.
Fico de pé tenho que ficar o mundo roda tenho que trabalhar catar latinha e papel senão não consigo dinheiro para aquela merda de prato feito do almoço com carne de sola de sapato e feijão azedo e da cachaça da noite quando encontro Maria e a gente bebe até não mais poder e rola no chão e ela me abraça com sua pernas magras e cheia de manchas escuras e eu agarro seus cabelos encardidos e a penetro e fazemos sexo até feder e sinto suas unhas rasgando minhas costas e a gente bebe e fuma um cigarro quando o dinheiro sobra tomo um conhaque barato porque não tenho dinheiro para bebida cara e a vida não vale uma bebida cara e Maria ri na minha cara porque sabe que não tenho dinheiro e diz que só fica comigo quando está solitária e que nos outros dias sai com outros catadores que têm mais dinheiro e então ela some de noite e só aparece no outro dia com o rosto cortado e um olho roxo e então ela volta pra mim e eu a recebo de volta porque quero seu sexo e seu cheiro e seu suor de vez em quando pra me sentir vivo e partilhar meu suor e meu conhaque e parte da minha sujeira porque sou vagabundo e minha alma é mais suja que meu corpo e só Maria sabe e não se importa com minha sujeira nem com minha alma porque a alma dela também deve ir para o inferno junto com a minha e fico pensando como seria nós dois no inferno de mãos dadas e transando e fico pensando se tem conhaque no inferno e se tiver vou beber um ou dois tragos com Maria e o capeta.
Nasci nas ruas filho de mãe pedinte de esmola em sinal de carro chique e pai vagabundo e já me revoltei e cheirei cola e essas merdas todas que a gente cheira quando é jovem e está se fudendo pra vida até perceber que a vida também está se fudendo para você e que se você não ficar esperto a vida te leva pro fundo da terra e quero não morro de medo de pensar em eu deitado debaixo da terra e sete palmos de terra em cima de mim e assim fui levando até minha mãe morrer de fome e desilusão e hoje não tenho casa nem família nem emprego só tenho Maria e esse trabalho de catador de lata de papel e a cachaça e de vez em quando um conhaque um cheiro de liberdade e o chão do galpão onde durmo vomito e faço sexo com Maria.
            Quando caí nas ruas e nela fiquei e senti fome e pedi dinheiro e ninguém me deu dinheiro para comer então comecei a roubar fruta ou qualquer comida que aparecesse na frente porque saco vazio não para em pé e rodei a cidade e me chamavam de doido mas eu estava cagando para eles só queria comer e ficar sentado num banco qualquer foi quando conheci Maria e ela me deu um pedaço de pão e eu disse que amava ela e ela riu um sorriso sem dentes e me deu mais um pedaço de pão e aí mesmo com a boca cheia de pão eu dei um beijo de língua nela e ela deu outro em mim e sua boca tinha gosto de cachaça e solidão mas amei Maria assim mesmo e decidi ficar com ela não sair mais de perto dela até porque eu não tinha ninguém e ela também não e me contou sua história a velha história de sempre da menina que perde a virgindade no interior e  vem trabalhar na capital e cai na vida e nunca mais volta e não sei porquê mas gosto de ficar repetindo nunca mais acho que é uma frase bacana que os bacanas devem usar mas Maria era triste e passava os dias catando latinha e papel e decidi que também cataria latinha e papel e quando tínhamos algum dinheiro comprávamos cachaça ou conhaque e íamos para o fundo do galpão de papel e ali mesmo fazíamos sexo e fedíamos a suor e loucura e nossas peles eram cheias de manchas e sujeira mas eu não me importava e gostava de fazer sexo com ela assim mesmo e beijava seus seios e ela gemia e gritava e me deixava doido e parecia até que o mundo acabava ali.

terça-feira, 25 de outubro de 2011

Capítulo 5 (e último) do conto "Eu, Deus"


                                               Capítulo 5: O Fim
O nada. O nada absoluto e senhor de tudo. O nada. O horror. O horror negro e seco. O horror.
Coma. Estava em coma num hospital. Havia falhado de novo. Escuridão. Trevas. Dor. Sombras. Insanidade. Sem conseguir me mexer, sonhei como só os loucos ou os deuses sonham.
Lembro-me de alguns sonhos. Num deles, lobos me cercavam por todos os lados. Aconchegavam-se nas minhas pernas e lambiam meu rosto. Em outro, o diabo, sempre de terno, dançava e cantarolava uma canção infantil, algo como “vamos passear no bosque enquanto Seu Lobo não vem”. E gargalhava como um deus. Até que Deus apareceu e ele se retirou. Fitou-me nos olhos, mas nada disse. Foi embora com seu séquito de anjos. Então surgiu Nietzsche. Olhou-me com ironia e disse por trás de seu vasto bigode: “Ainda está vivo? Pois morra se for mesmo um deus”. Vi quando chorou.
Quando não sonhava, eram apenas trevas, sombras e dor. E frio. Fazia muito frio. Finalmente, no um mês depois, abri os olhos. Yasmin estava ao meu lado. Estou salvo, pensei. Minha mulher está aqui. Está tudo certo. Ela vai tomar conta de mim. E apaguei de novo.
No 45º dia saí do hospital. Yasmin levou-me para casa até que me recuperasse. Tratou-me bem, cuidou dos meus ferimentos, deixou que visse meus filhos. Não conversava muito. Mas suspirou aliviada quando finalmente me recuperei completamente e avisei que já poderia ir embora. Percebi que meu lugar nunca mais seria ali. Já a havia machucado o suficiente.
Coloquei algumas roupas na mala e beijei-a no rosto. Ela ficou imóvel. Beijei Pedro e Mel. Ninguém me perguntou para onde eu ia nem eu disse nada. Peguei uma latinha de cerveja, ônibus e fui parar no litoral da Bahia. Encontrei uma vila de pescadores e comprei um pequeno barco de pesca.
Numa manhã de sol, enchi uma caixa de isopor com latinhas de cerveja, entrei no barco e naveguei sem parar durante horas. Quando o combustível finalmente acabou, era uma noite sem estrelas e eu estava em mar aberto, completamente bêbado, perdido e com a última latinha nas mãos. Não haveria mais volta. Não havia mais nada a fazer. A partir daquele momento, eu seria um deus do mar.

segunda-feira, 24 de outubro de 2011

Escritos Sujos - Capítulo 4


Capítulo 4: O Começo do Fim
Cansada e amarga, Yasmin entrou em profunda depressão e pediu-me que saísse de casa. Fiz a mala e parti no dia seguinte. Senti tristeza. Meu elo com o “mundo real” havia se partido. Estava solto na minha loucura, cada vez mais insana. Caminho aberto para o fim. Melhor assim. 
Então chegou o começo do fim. Nem sexo, nem caçadas, nem bebidas me satisfaziam mais. Pelo contrário, alimentavam o vazio cada vez maior na minha alma. Experimentei dor. Transformei-me num deus doente. Gritava de uma dor lancinante, a dor do vazio, da solidão, da tristeza sem razão e sem fim, da descrença total e em tudo e em mim, da desesperança. Mas ninguém ouvia. Claro.
Acostumaram-se com o deus orgulhoso e prepotente, senhor de si e da situação. Como, agora, poderia convencê-los da minha dor e fraqueza? Nem mesmo Yasmin compreenderia.
Deixei o trabalho nas mãos dos meus executivos. Afastei-me de tudo. Passava o dia bêbado em flats imundos no centro de uma cidade imunda, de uma humanidade imunda. De noite, vagava por ruas escuras na esperança de que algum enviado de Deus ou do diabo aparecesse do nada e cravasse um punhal no meu coração. Mas ninguém apareceu. Amaldiçoei céus e infernos por isso.
Minha loucura piorou. Sonhava e tinha visões com Yasmin, com Mel, com Pedro. Conversava com pedras, paredes e com Deus em mesas de bar. Ele aparentava uns 40 anos, embora não tivesse cabelos brancos, e tinha um sorriso irônico no rosto. Sim, a ironia também lhe caía bem.
Certa vez, numa noite fria em que a chuva e o vento pareciam intermináveis, entrei num bar escuro, mórdibo, com um ar denso e pesado pairando no ar, mesas decadentes e uma estranha luz azul no teto. Sombras. Jim Morrison bebia uísque em uma mesa, cantarolando “É o fim, meu amigo, o fim de todos nossos sonhos”. Poe também estava lá, na mesma mesa, com o corvo pousado nos ombros. Bebia cerveja e já estava bêbado. E Nietzsche tomava um conhaque e coçava o bigode. Sentei-me numa mesa ao lado e fiquei observando-os.
Então o diabo chegou e sentou-se à minha mesa. Trajava terno impecável, goma no cabelo e olhos de fogo eterno.
- Yanko, disse ele com voz gutural, sei que você tem simpatia por mim. Há muito tempo o aguardo. Venha comigo e deixe o sofrimento neste mundo Dele. A rua está movimentada. Você está bêbado. Basta cruzá-la eu farei o resto. Você será bem recebido na minha morada.
Eu não disse nada e ele desapareceu sorrindo e dançando valsa no fundo do meu copo de cerveja. Já não sabia se estava bêbado ou louco. Ambos, provavelmente. Levantei-me e fui até a mesa de Jim, Poe e Nietzsche.
Puxei uma cadeira e sentei. O corvo dormitava como um demônio nos ombros de Poe. De vez em quando, abria os olhos em brasa e me fitava. Poe nada falou, mas fitou-me com seus olhos tristes e tomou mais um gole de cerveja. Parecia pensar em Lenora. Jim limitou-se a murmurar que as pessoas são estranhas. E Nietzsche falou, batendo a mão na mesa, que Deus estava morto e que eu, como um deus, também deveria estar.
Ele estava certo. Lembrei-me do diabo. Levantei-me cambaleando e dirigi-me até a porta. Um cachorro negro de olhos vermelhos sorriu para mim na noite trevosa. Atravessei a rua. Foi rápido. Luzes vieram em minha direção. Senti um golpe na barriga e o corpo voar. Depois, aterrissei no asfalto com gosto de sangue na boca. A cabeça bateu primeiro e ouvi um estalo de osso quebrado. Tudo ficou escuro, mas ainda ouvi o barulho da freada e senti o cheiro de pneus fritando no asfalto. Estava debaixo de rodas. Sangue fluía da minha boca. “Finalmente consegui”, pensei, antes de apagar e ver o diabo dançando valsa na calçada.

domingo, 23 de outubro de 2011

Eu, Deus - Capítulo 3


Capítulo 3: A depressão
Aos 39 anos, a ironia e o cinismo deixaram de fazer efeito e de preencher o vazio da minha alma. O mundo começou a me parecer ainda mais insuportável. O trabalho também já não era suficiente. Foi então que apareceu a depressão. Deuses não foram feitos para viver neste mundo. Decidi blindar ainda mais minha alma contra sentimentos, emoções ou qualquer coisa que pudesse me ferir. Tornei-me seco e oco como uma árvore velha. Aos 41, veio a primeira tentativa de suicídio. Remédios. Depois, a segunda, a terceira, a quarta e a quinta.
Foi então que apareceu o doutor psicanalista. Um cara legal. Deu-me remédios contra depressão e disse que eu deveria parar de ser tão severo comigo mesmo. Que deveria relaxar um
pouco e aproveitar a vida. Decidi seguir seus conselhos, mas não sabia como aproveitar uma vida que não havia pedido. Então, deixei os remédios de lado e comecei a beber.
Instaurei um happy hour em Zeus. Depois das sete da noite, eu, meus diretores e alguns funcionários abríamos duas ou três garrafas de uísque, enchíamos a cara e ríamos como palhaços. Chegava em casa diariamente bêbado e fedendo a álcool. No começo, Yasmin se queixou. Depois, eu só ouvia seus soluços e lágrimas abafadas no travesseiro durante a noite. Mas estava bêbado demais para me preocupar. Nunca gritou ou brigou comigo. Parecia reconhecer que deuses são mesmo estranhos e diferentes.
Paula era uma das minhas melhores redatoras. Brilhante. Bonita, morena, uns 25 anos, casada, sem filhos. Quando começou a ficar para o happy hour, percebi que seu olhar me procurava com insistência. Decidi brincar de apaixonado e aproveitar a vida, como o doutor mandou. Convidei-a para um vinho, ela topou, saímos depois do expediente e transamos naquela mesma noite.
Foi assim por três meses. Chegava sempre tarde em casa e não fazia questão de esconder a camisa toda suja de batom. Deuses não devem satisfações. Yasmim foi perdendo o brilho do olhar. Mas eu estava fazendo o que o doutor mandou. Então, um dia, cansei-me de estar apaixonado. Estava começando a ficar monótono. Demiti Paula no dia seguinte. Nunca mais a vi. Como não tenho emoções, nada senti. Era só mais um vazio na minha vida.
Depois, vieram outras mulheres. Eu tinha que aplacar e preencher meu vazio. Acabei com o happy hour e comecei a sair sozinho para a noite. Descobri que manipular mulheres é ainda mais fácil que manipular otários. Palavras certas na hora certa, um toque na mão, uma lorota qualquer e pronto. Elas se abrem, sorridentes, para você. Eu era um deus e mulheres não resistem a deuses.
Conheci e fiquei com mulheres de todas as idades, quilos, aparência e personalidade. Fiquei com ninfetas, jovens, mulheres maduras, louras, morenas, ruivas, casadas, solteiras, desesperançadas, loucas por um relacionamento sério, ficantes, pegantes. As mais jovens me transmitiam o elixir da juventude. Eram quentes e me faziam sentir como um garoto. As maduras, mais calmas, me faziam sentir o sexo em sua plenitude.
Transformei-me num lobo voraz em busca de caça todas as noites. Voltava para casa com o corpo saciado, o sangue movido a uísque e a cabeça vazia. Desmaiava na cama e só voltava a esse estúpido mundo real no dia seguinte. Ás vezes, ainda encontrava Yasmin chorando. E assim se passaram meses.
Contei ao doutor e ele veio com aquele papo furado de que existem dois lobos dentro da gente: um bom e outro mau. E que o mais forte seria aquele que eu alimentasse melhor. Como sou um deus justo, decidi alimentar meus dois lobos para que, em pé de igualdade, eles que se pegassem e decidissem, nos dentes, quem era mais forte. O mau venceu e, com ele no comando, mantive minhas caçadas noturnas. Ok, confesso que trapaceei o resultado. Mas Deus também não trapaceia com seus filhos?