domingo, 6 de novembro de 2011

Um dia na vida (obrigado, John...)

O relógio toca e me desperta às seis da manhã. Estou morto. Tive insônia e fui dormir às quatro. Mas isso não interessa. Trabalhar é preciso. Filhos na faculdade. A prestação da casa. A luz. O carro. O supermercado. Depois dizem que a vida não tem preço. Tem. E caro. E você paga, de uma forma ou de outra.
A cabeça dói há dias. Veias pulam nas têmporas. O coração dá a sensação de parar por segundos. Estou morto. Mas dane-se. Sou o capitão de um navio que ainda não chegou ao porto. E ele tem que chegar.


Pulo da cama, tomo um banho e uma xícara de café, beijo a mulher e saio de casa. Chove. O ônibus passa na hora exata. Eu subo e paro em pé em cima de uma senhora, que me xinga porque gotas do meu guarda-chuva caem em seus seios moles. Eu rio e deixo a imaginação voar. Lá fora, um ônibus atropelou um cara numa moto. O corpo ainda está no chão. Uma multidão olha. A cabeça dói.


Chego no escritório e bato o cartão às oito. Digo bom dia, como vai, tudo bem, como foi ontem, e afinal sento na minha cadeira. Pilhas de papéis aguardam minha análise. Respiro fundo. Estou morto.


Levanto e vou pegar um café. Encontro uma das secretárias da firma. Jovem, bonita, sensual. Lembro meus tempos de jovem e digo uma piada idiota. Ela ri educadamente. Vai embora. Fico com cara de pateta enquanto tomo o café. A cabeça dói.
Volto pra mesa e o chefe cobra os papéis. Quer parte deles antes do almoço. Tenho vontade de fumar. Paro o trabalho e vou dar uma pitada na escada, único lugar permitido para fumantes. A secretária está lá, com outra funcionária. Conta como foi a balada da noite anterior. Riem. Sinto-me sinto ridículo. Apago o cigarro e volto para a mesa. Estou morto.


Entrego os papéis às onze e cinqüenta. O chefe reclama da demora e diz que ando no mundo da lua. Que preciso me esforçar mais, que tem muita gente jovem de olho no meu cargo. Tenho vontade de mandá-lo tomar no cu, mas engulo o sapo. As contas, a faculdade, o carro, o supermercado. Peço desculpas e volto para a mesa. Antes tomo um café. A cabeça dói.


Hora do almoço. Desço com um colega para o self-service de sempre. Ele é mais novo que meus cabelos grisalhos. Fala de futebol, mulheres, comenta sobre as secretárias, diz quem está “pegando”, gaba-se de suas conquistas. Ouço e nada digo. Estou morto.


Chega outro colega. Fala da família e do sítio que está comprando, de sonhos realizados. Ouço e digo é, legal, bacana, você será feliz lá, parabéns. Lembro-me que não tenho mais sonhos. Antes é preciso pagar a casa, a faculdade, o carro, o supermercado. Ele continua falando e eu mergulho nos meus pensamentos. A cabeça dói.


Começo da tarde, de volta ao batente. Leio meus papéis cheios de números e de projeções para o futuro. A gravata aperta o pescoço. O almoço corrói o estômago. Levanto e tomo mais um café. A respiração fica difícil. Tenho vontade de parar. Mas tem a faculdade, o carro, a casa, o supermercado. Tomo outro café e volto para a mesa. Estou morto.


Cinco da tarde. A mulher liga e pede pra levar pão para o café. Lembra que amanhã vence a prestação do carro. Diz que minha sogra se queixou de dores e de estragos na casa dela, e que precisamos arrumar a parede que está com infiltração. Conta que uma filha ligou avisando que vai passar a noite na casa de uma amiga para estudar. Que meu cunhado vai fazer churrasco domingo e temos que levar a picanha. Que viu na TV que inventaram uma nova forma de fazer lipoaspiração. Que vai dar uma saída com uma amiga para ir a o shopping, mas vai deixar a janta pra mim. Que a diarista não foi e a casa ainda está de pernas pro ar. A cabeça dói.


Fim de expediente. Levanto, visto o paletó, pego minha pasta e afrouxo a gravata. O chefe sai sorridente com os novos executivos. Um colega fala que ouviu falar em demissões na firma. Novos tempos, mundo globalizado, pós-graduados, sangue novo, essas coisas. Que precisamos evoluir. Estou morto.


Ainda chove. Entro no ônibus e tomo cuidado para que o guarda-chuva não molhe ninguém. Uma mulher parada um pouco mais à frente grita porque o cara ao lado está se esfregando nela. Barraco. Envergonhado, o cara desce no próximo ponto. A mulher fala que devia ter chamado a polícia. O motorista arranca o ônibus. Balançamos feito gado. É o que somos. A cabeça dói.


Desço. Passo na padaria e compro pães, cigarros e uma caixinha de cerveja. Chego em casa. Estou sozinho. Coloco o guarda-chuva no tanque de lavar roupas e abro uma latinha. A cerveja desce bem. Desce rápido. Abro outra e acendo um cigarro. Desabo no sofá e penso na vida. O corpo dói. Estou morto.


Penso em quando era jovem. Lembro do meu pai saindo para trabalhar de terno e gravata, feito eu agora. Lembro do dia que disse a ele que não gostaria de ser como ele, de passar a vida trabalhando para garantir o sustento da casa. Ele sorriu e disse que um dia eu entenderia tudo. Ele acertou. A cabeça dói.


Na décima-segunda latinha, percebo que estou tonto e o maço de cigarros está acabando. A cabeça gira e dói. O estômago enrola. A mulher ligou dizendo que já a caminho. Eu disse tudo bem, te espero, meu amor. Na TV, o jornal diz que um avião caiu, a inflação subiu e crise assusta o mundo. Há uma guerra em algum lugar. Caças franceses e ingleses despejaram bombas e destruíram cidades. No Brasil, alguém roubou dinheiro de merenda escolar. Um ministro caiu. Um louco diz que o mundo vai acabar. Eu rio. Estou morto.


Levanto para pegar mais uma latinha. Abro a geladeira e vejo que acabou. Decido tomar uma dose de cachaça. Ela desce esquentando o peito. Lembro que amanhã é dia de pagar a prestação. Acendo mais um cigarro e sopro a fumaça para o alto. A mulher não gosta que eu fume em casa. Vai brigar comigo. Mas agora estou só. Dou mais um trago e bebo mais uma cachaça. A cabeça dói.


O estômago cobra a conta. Enjôo. Vou ao banheiro e vomito a vida. Junto com a cerveja e a cachaça, o vômito leva as prestações, o carro, a casa, as faculdades. Leva o mundo, as bombas, o shopping. Leva sonhos que não tenho mais. Cansaço, muito cansaço. Sou o capitão de um barco que ainda não chegou ao porto. Tenho que conseguir. Tenho que conseguir. Minha cabeça incha e algo explode dentro dela. Dor. Muita dor. Eu desmonto sobre o vaso e sobre meu vômito. “Capitão, ó meu capitão”. Escuro. Estou morto.

8 comentários:

  1. E a vida se repete... Nao eh mesmo? A proposito, adorei o "balançando como gado, é o que somos", rs. Ainda bem que temos o livre arbítrio para escolher o que queremos fazer e, em todos os casos, abrir uma latinha de cerveja quando se chega em casa é sempre a melhor opção, rsrs!

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  2. TAmbém gostei do "balançando como gado é o que somos". Mas gosto mais da imagem do capitão de um navio que ainda não chegou ao porto. E ele tem que chegar. É engraçado. Eu me sinto assim. Uma capitã de uma nvavio que ainda não chegou ao porto. Mas tem que chegar. Não bebo como esse seu capitão, mas engulo sapos, cobras e lagartos

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  3. Raso e profundo, né, amigo? É o que somos: estamos todos mortos - até quem ainda tem sonhos. Bom demais seu texto, superestético o blog. Gostei demais. Deixe a porta aberta, visitarei mais vezes...

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  4. Thais Proença Diniz Pena13 de novembro de 2011 às 16:29

    poemas, contos,à parte, vou sugerir a leitura, a uma esposa chata.Vida de homem
    Isso é genial, instrutivo,profundo, sonhos em coma.
    Parabens! posso voltar sempre?

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  5. Thais Proença Diniz Pena13 de novembro de 2011 às 16:31

    poemas, contos,à parte, vou sugerir a leitura, a uma esposa chata.Vida de homem
    Isso é genial, instrutivo,profundo, sonhos em coma.
    Parabens! posso voltar sempre?

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  6. Eu, que aqui estou, espero que todos voltem ao blog e não me abandonem. Obrigado a todos pela força.

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  7. Sábio reencontro com a irônica realidade, que é nossa vida! Parabéns mestre!

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